21.5.09

O presidente piadético (acto falhado)


Diz-se: que de poeta, médico e louco todos temos um pouco. Apesar de ser alérgico a adágios populares (e como me incomoda a incongruência de cada vez que deito mão a um adágio popular), proponho que este seja reinventado para acrescentar um quarto predicado: humorista. Ficaria "de poeta, médico, humorista e louco, todos temos um pouco". A crer pela inesperada veia humorística da pessoa mais circunspecta que esta terra conhece (depois de Eanes e do treinador da agremiação que acabou de ganhar o campeonato de futebol), faz todo o sentido a revisão do aforismo.


Sim, o presidente da república é a tal sisuda personagem que brindou os jornalistas que o acompanhavam à Turquia com insólitas tiradas humoristas. Desastrado humor, todavia; ou a confirmação de que há pessoas que não nascem fadadas para terem em si determinados atributos. Cavaco ri com dificuldade; como pode ter a pretensão de irradiar humor, ainda por cima daquele género de humor que convoca a superior inteligência do destinatário (assim o julgou o remetente)? Não pude resistir a outro embevecimento: ver sua excelência a jorrar piadas pela metade, deixando nas entrelinhas a conclusão da graçola. Ao mesmo tempo, largava o foguetório e fazia a festa, esgadanhando um largo sorriso de auto-satisfação (eu diria: auto-complacência). Sempre me meteram dó os que não tinham jeito para contar anedotas e que, diante da pungente inépcia, se riam da piada que contavam, perante a impassibilidade dos demais. Foi disto que me lembrei quando vi sua excelência a passear a veia humorista na Turquia.


Já não acompanho a corte de críticos, opinadores muito respeitáveis, senadores da opinião pública, que lamentaram o mau gosto de gracejar com coisas tão sérias (a pouca vergonha do chefe do Eurojust e os arrepiantes números do desemprego). Continuo a achar que tudo, e sobretudo as coisas mais sérias, se põem a jeito do humor. De preferência do sarcástico humor. Ao menos com o humor anestesiamos as desgraças parodiadas. Que deixam de ser desgraças pelos dedos do suavizante humor.


Notei uma leveza surpreendente no "mais alto magistrado da nação". Não foi apenas a tendência para o, nele, desconhecido humor. Andava mais sorridente. Num dia até exibiu um penteado a descair para o modernaço, aquelas melenas já muito grisalhas ajeitadas para trás e não para os lados, os cabelos um pouco desgrenhados em vez do habitual penteado em que nenhum cabelo cai nem um milímetro fora do sítio. Um rebelde de fato de gravata. O que teria acontecido à figura presidencial para nos aparecer possuído de tão surpreendente leveza?


A meio das reportagens, a primeira-dama também desfilou à frente do microfone. Perorou muito, sobretudo sobre as compras que não conseguiu fazer no bazar de Istambul – e, ai Jesus, que não ia levar prendinhas para as netinhas. Esta moda de entronizar primeiras-damas ultrapassa a minha compreensão (escorregadela de politólogo). A figura não está institucionalizada, pelo menos não o está pelas regras. É-o pelas convenções que atribuem papéis às primeiras-damas. É o lado mundano a invadir a suposta respeitabilidade da política, as revistas cor-de-rosa a entrarem no biombo das plúmbeas instituições. Um porém, aqui: como em tudo na vida, há quem desempenhe bem o papel e quem o faça em medíocre craveira.


Ao menos é reconfortante sentir que havia ali naquela "visita de Estado" uma adorável harmonia conjugal que, adivinho, era a razão da exuberância do senhor presidente. De repente, sua excelência começou a mostrar o que sempre escondera: que é feito de carne e osso como todos nós e que estava ali na Turquia profundamente in love. Retenho uma enternecedora imagem, ainda no avião a caminho da Turquia: o microfone à frente da presidenta e o consorte a olhar para ela com um encantamento facial digno de um romance que arrebata quem seja pinga-amor. Os êxtases da alma, sabemo-lo, oleiam o sentido de humor, subtraem os fardos que pesam nos ombros e mostram gente em pura levitação.


Foi a desempoeirada feição mundana de tudo isto que deixou vir à tona uma espécie de segunda lua-de-mel do casal presidente. Eu dispensava ser testemunha desse cenário dantesco.

1 comentário:

Milu disse...

Há algum tempo vi o Cavaco Silva na televisão proferindo para um grupo de crianças, a frase que acreditamos ser da autoria de Obama - Yes, we can! Fê-lo de uma forma tão sem graça, tão despida de sentimento e de espontaneidade que quase foi obsceno! No lugar de Cavaco Silva eu teria uma imensa vergonha de parafrasear um qualquer líder de outro país, porque ao fazê-lo, revelaria uma irremediável ausência de criatividade! Era como se não tivesse ideias, ou não tivesse nada para enunciar ao mundo! Se até as crianças são capazes de dizerem coisas tão bonitas!...