As vergonhas dos outros são as agradáveis vergonhas. Matéria-prima ideal para o esquecimento do eu que se deseja olvidar. Como os fantasmas nos armários continuam a sussurrar ao ouvido, as vergonhas distantes fermentam refrescantes memórias das impudicícias onde a intimidade se consome.
É o fatal voyeurismo. As andanças de cada um, tolhidas pela expiação dos males através dos piores males de visita a outros. Como se as doenças de alguém fossem doídas pelos demais – ou, diria melhor, os outros mirones das doenças alheias. O mal de tudo isto é o contágio irreprimível: se há tantos a vasculhar todos os outros, a indeclinável reprodução do comportamento. O perfume da moral a que nos arrogamos pelo direito a sermos diferentes troa as suas tremendas consequências: o recuo à casa da partida, de onde nem se chega a sair caso a teimosia na postura moral persista.
Ao deitarmos o olho na vida do lado levitamos o esquecimento da nossa. Dizem os puristas da moralidade que ninguém se pode esquecer dos seus pessoais telhados de vidro. Eu diria mais longe: ao espiolhar os telhados alheios a nossa casa perde as telhas que a protegiam, e até as paredes se tornam translúcidas. A maior consumição é chegar a esta conclusão: exibe uma putrefacta lição de moral, quando todas as lições de moral deviam ser remetidas ao sarcófago das coisas evitáveis. Porventura, a única lição de moral aceitável é a de que não há quaisquer lições de moral aceitáveis, nem pregadores de moral cheios de sumptuosidade a ponto de serem gurus das mortais almas sedentas de orientações.
Os telhados, inclinadas ladeiras onde uns tufos de musgo se escondem em dobras de telhas carcomidas pela humidade, são o túmulo dos segredos que o nunca chegam a ser. Mesmo quando se julga que o telhado é uma opaca cortina que tudo oculta, abrem-se umas brechas por onde a turba esfaimada de curiosidade vem espreitar. Por mais opacas que sejam as telhas, tornam-se translúcidas por um passe de magia. De um passo só, a transparência contagia-se e desce pelas paredes abaixo, até tudo se tornar um antro onde os intrusos se demoram. É daquelas coisas que mostram a espessura do mundo: o que muito demora a construir esboroa-se num fugaz instante.
Há vidas pessoais que parecem ter uma pequenez detestável para quem nelas habita. Talvez a explicação para a tanta atenção ao que se passa noutros telhados. Ou isso, ou o muito cansaço da vida destinada a cada um dos juízes das vidas alheias. Seja ungido pela esconsa vida pessoal, tão desinteressante que as vidas dos outros é que cativam a atenção; seja pela vida insuportável que se enreda no corpo que é a prisão da vida que o aloja: a coscuvilhice é o veneno das poses superiores que desfilam a toda a hora, dos palpites sobre a vida dos outros quando delas sabem pouco mais do que o desconhecimento. O altar supremo da pior das ignorâncias.
O anonimato não torna implausível ser-se vítima da curiosidade dos outros. Rumores adulteram o sentido da vida que se vive? Só pelo desconforto de estar no alguidar dos rumores, onde as facas atraiçoam o sentido da vida e a transformam num simulacro do que é – ou apenas na fantasiosa conveniência dos fautores do rumor. As insidiosas maquinações podem ser assassinatos de carácter; nem assim merecem a indignidade de uma reacção que não deve sequer ser esboçada. Os rumores ficam com quem os alimenta, mais os seus particulares telhados transparentes e muito, muito escorregadios.
Se nem o anonimato protege a existência das facadas que vêm com os rumores, o que diremos das públicas figuras que se passeiam, ufanas, em jornais e revistas que dissecam a gente famosa? Nunca consegui perceber como os arrivistas têm urgência em entrar para as páginas das revistas e dos jornais. Quão desconfortável será a sensação de andar rua fora e ser constantemente escrutinado pelos olhares dos transeuntes que reconhecem a pública figura, com aquele ar de quem diz "eu conheço-te das páginas das revistas/das televisões" e logo depois se agarra ao telemóvel para contar aos mais íntimos a sorte que teve, esse dia ungido pelo cruzamento com tão ilustre personagem.
O que distingue essas públicas personagens dos animais do zoológico que se prestam à curiosidade alheia?
1 comentário:
Olá! Tenho estado a ler os posts do seu blog. Também eu estranho porque gostam tanto as pessoas de vasculhar no alheio. Penso, por vezes, que este mórbido interesse tem origem no facto de as pessoas, isto é, a grande maioria, não possuírem fortes convicções, ou se as possuem, são covardes ao ponto de não viverem de acordo com elas, de modo que a frustração cresce perigosamente! Não vivendo bem, então para elas, ninguém poderá viver bem. Daí o prazer em testemunhar a desgraça alheia, porque os faz sentir menos sós na aridez da falta de ideias e coragem para se ser feliz! A felicidade, que implica a coragem de assumir a diferença imposta pelas nossas convicções.
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