Para começar à bruta: tenho para mim que o bloco central é o herdeiro legítimo da união nacional, com o seu eixo deslocado à esquerda.
Parece que não aprendemos com os erros do passado salazarento. Gostamos de "consensos", "entendimentos abrangentes", "unanimismos" e outras fórmulas similares que asfixiem o debate público, a troca de pontos de vista, o confronto de ideias que andem por quadrantes muito diferentes. A conjuntura do momento é o novo pretexto para a estafada fórmula do bloco central. Esta crise ímpar está a pedir que as "forças vivas" da pátria, aquelas que contam a sério (ou seja, os que não se acantonam nas extremidades da paisagem política), ponham de parte as divergências e remem no mesmo sentido. Quando ilustres empresários pedem que os dois maiores partidos se entendam e formem governo, caso um deles não vença as eleições com maioria absoluta, é todo um programa de pensamento canhestro que vem à superfície.
Isto de empresários com nomeada apadrinharem um governo do bloco central exige que algumas palavras se detenham no assunto. Abundam realistas na economia (e, noutro plano, nas relações internacionais). São pragmáticos à sua maneira. Consideram que não há ideais que resistam às necessidades da realidade. O pensamento deve-se prostituir quando a realidade exija que a espinha se dobre e renegue o que outrora fora idealizado. A crise não se compadece – dirão – com o desperdício de energias que podem ser arregimentadas se os nubentes do bloco central compreenderem que o que os une suplanta o que os divide. (Já os realistas das relações internacionais aceitam, sem pudor, todas as negociatas com ditadores espalhados pelo mundo fora, sempre que essas negociatas trouxerem vantagens para a "economia nacional".)
Mete-me espécie esta deriva centrista, o horror que esta gente admiradora da "estabilidade política" tem ao debate de ideias, ao incómodo das interrogações que perturbam o comodismo das certezas inabaláveis. Isso ressoa à união nacional da ditadura de antanho, com a diferença da tolerância de ideias que é garantida pela Constituição mas pouco praticada. Esta sensata gente, que tem Cavaco como referência, afinou a bússola para o centro do centro. Julgam que esta terra carece de reformas, as reformas sempre adiadas ou interrompidas ou prometidas mas que nunca deixaram a fase do papel. E que as reformas só se fazem em duas hipóteses: ou um dos nubentes do bloco central arrebata a maioria absoluta, ou consumam o matrimónio governamental.
Porventura não lhes é dado a ver que esta terra não carece de reformas. Melhor dito, que as reformas que fazem bem a esta terra já não têm a assinatura dos governos que residem no Terreiro do Paço. Elas têm o cunho da União Europeia. Lamentavelmente, ainda somos instruídos para acreditar que os protagonistas das nossas vidas são os políticos domésticos que ocupam lugares no governo. As atenções estão desfocadas. É da União Europeia que chegam as decisões que contam. Andamos a precisar de trocar de óculos, pois os que julgamos protagonistas não passam de actores secundários.
Há outro argumento que contesta a inevitabilidade do bloco central. Crescemos quando nos abrimos à confluência de ideias diferentes. Um espaço público polarizado é como um corredor estreito onde as ideias se encolhem por causa do espartilho que as comprime. O pior é que o bloco central é, em termos de ideias, a diferença entre cinzento e cinzento só um pouco diferente. Os adoradores do bloco central, vejo-os como uma matilha pérfida que ameaça os que não se revêem no "consenso" forçado: dantescos cenários e cataclismos irresolúveis, a pátria mergulhada numa latrina. É a maneira legítima de perpetuar a união nacional de outrora.
O bloco central é o pior dos miasmas que se conhece. As insidiosas certezas que se impõem, mostrando que devemos caucionar o bloco central se não dermos a maioria a um dos nubentes do bloco central, só servem para nos manter imersos em letargia. Pelo meio, carradas de terrorismo intelectual. Como se a dissidência do bloco central fosse crime de lesa-majestade, sobretudo nestes tempos de crise tão terrível. E então pergunto: será que a crise, a eterna crise, não é balsâmica para os sacerdotes do bloco central?
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