O desespero explica comportamentos – como dizer? – irracionais? Como se explica que a extrema-esquerda caviar consiga reunir 12% das intenções de voto, a fazer fé na última sondagem publicada?
Já ultrapassou o lugar-comum dizer que a crise prova a falência do "neo-liberalismo" (no que o "neo-liberalismo", na sua indefinição, queira significar). As pessoas fogem das ideias mais à direita. A "teologia do mercado" foi desmascarada. Aos liberais, só falta serem crucificados. Os pastores da desgraça trauteiam a mesma melodia que sempre entoaram. Só que agora ostentam a vaidade de quem se julga vingado pela história, a história que finalmente aconteceu. Pelo meio dos anátemas e de numerosos imperativos categóricos levitados por conclusões que nem sequer merecem discussão (menos ainda contestação, sob risco de insuportável heresia), os desta heterodoxia não conseguem esconder o contentamento com a crise que lhes terá assegurado a benta razão. Às malvas os efeitos da crise; brindam à crise benfazeja, a crise que os trouxe para o palácio da razão.
A extrema-esquerda não se cansa de enviar mensagens, explícitas ou cifradas, da ausente vocação genética para ser poder. Todavia, insiste na recusa do paradigma do passado recente, afinal o paradigma que, na sua maneira de ver, nos levou à crise sem fundo. Insiste em anunciar medidas que devem ser adoptadas, sem dar o flanco à discussão de ideias. Nem vale a pena notar a congénita falta de tolerância que é seu timbre. Mais refrescante é sabê-la com pretensões de poder, a julgar pelo activismo com que desmultiplica a sua heterodoxia, enfim a um passo de ser convertida na nova ortodoxia. Quando a heterodoxia se transformar em ortodoxia, a esquerda caviar terá um problema de identidade: diluem-se os genes anti-sistema que sempre foram seus. Ainda haveremos de ver se a extrema-esquerda tem que responder a esta interrogação.
Por mais atractivo que seja o cenário (ou dantesco, consoante o estado de espírito do momento), não vou pelo caminho da especulação. Prefiro estar na poltrona a assistir ao espectáculo quando chegar a hora H. Até lá, mergulho nos dados que o tempo presente já deu a conhecer. Olho para a sondagem e vejo a extrema-esquerda a reunir 12% das intenções de voto. A subir ao lugar de terceiro partido do regime. São sensações contraditórias. Por um lado, alguma perplexidade: será que uma fatia considerável desta amostra de inquiridos sabe de que massa anti-democrática é feita o Bloco de Esquerda? Por outro lado, sinto a desagradável gratificação de ver na esquerda caviar o obstáculo, ou um dos principais obstáculos, ao mais medonho de todos os cenários – a renovação da maioria absoluta da seita socialista.
Há, porém, um lado escondido nesta sondagem: por que razões tanta gente se enamora da extrema-esquerda chique? Julgava-se que já tinha passado o efeito marketing, sobretudo junto de uma certa burguesia urbana supostamente esclarecida (duvidando, contudo, que essa burguesia tenha conhecimento do património genético das ideias do Bloco de Esquerda). Eis uma primeira tentativa: no desespero da crise, há muita gente que vai pela explicação fácil e compra a lógica fatalista da extrema-esquerda. Outros não perdoam os atropelos que se devem a muitos capitalistas gananciosos e, num ápice, alistam-se em heterodoxias que dantes julgavam exóticas ou folclóricas. De repente, só me ocorre esta analogia: é como aquelas pessoas em aflição que se refugiam no conforto da fé, alimentando a secreta esperança que um deus as acuda. E eis como estes 12% da sondagem aparecem perfumados com uma deslumbrante essência metafísica.
A esquerda caviar agradece. Está-se nas tintas para a atracção metafísica que move muita gente para as suas fileiras. Todos os votos que vêm à rede contam. E agradece, sobretudo, à crise. Adivinho que, no íntimo dos sacerdotes maiores da esquerda caviar, as preces peçam a anjos e santos e deuses vários que deixem estar a crise entre nós por uma longa temporada. A crise é a caução da maioridade da extrema-esquerda. Às escondidas, como se fossem uma sociedade clandestina, erguem os cálices e brindam: longa vida à crise de agora.
Com as crises aprende-se sempre, e muito. Nesta, um notável efeito pedagógico: há quem cresça com a crise. Não é isto que acontece com os parasitas?
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