27.5.09

Pedra no sapato


Os dias parecem noites, tingidos pela espessa incontinência das vidas alheias. Das vidas alheias que adejam sobre a própria. São os torniquetes que impedem a passagem livre. Os passos saem trôpegos. Não por serem tortuosas as calçadas onde os pés assentam. Porque assentam em sapatos embutidos de pedras ferindo as palmas dos pés.


As pedras, coleccionam-se vida fora. Desatinos momentâneos a pesar na espessura do tempo, e nem o arrependimento os varre da memória como as cicatrizes inamovíveis teimam em cristalizar. Ou pessoas atravessadas no trajecto da vida, e depois os choques frontais que deixaram amolgadelas sem retorno. As muitas pedras nos sapatos são como traiçoeiras curvas que aparecem de repente, inquietando a pacatez da existência. São teimosas reminiscências que renovam os sobressaltos que incomodam a existência sossegada. Incendeiam a existência. Alguns acham que sem pedras no sapato não faria sentido a existência. A tarefa é desenvencilharem-se das incómodas pedras. Apraz-lhes o travo adocicado dos triunfos que emolduram de cada vez que atiram fora as pedras que sangraram os pés.


E não haverá outra solução? E se os sapatos cravejados de dolorosas pedras fossem deitados ao lixo, substituídos por outros sapatos despojados de pedras e ansiosos por serem inaugurados? Talvez seja o indómito apetite pelo conflito que preenche a essência da espécie. Parece que somos como touros rivais que se engalfinham furiosamente na delimitação do terreno. A raiva que espuma pelos cantos da boca é o sinal da confrontação ideal, em que se acha o sublime momento da afirmação do eu. Os outros são as pedras no sapato. Perder-lhes o rasto exige esmagar as adversidades que estorvam o caminho. As adversidades também são os outros.


Uma vez e outra mais: o erro está em ver a existência condicionada pela existência dos outros. Possivelmente por nos ensinarem, desde os bancos da escola, que a socialização é um imperativo da aprendizagem por que passamos através do envelhecimento. E, contudo, a socialização enxerta a doença que toma conta das entranhas e adultera a essência do ser. É a socialização necessária, indeclinável, que nos torna viciados na existência dos outros. Como se a vida própria só fizesse sentido na medida da vida dos outros. Pode conter um lado belo, quando as pontes com as vidas de outros se fixam pelo cimento dos sentimentos nobres. O mal é quando as pontes se desfazem em inúteis pendências que trazem ao de cima a má essência das gentes. Aí não há quem escape ao diagnóstico. Não há querubins e demónios, demarcados. Todos são apanhados na demoníaca feição das pedras nos sapatos espalhadas pelos pés de toda a gente.


Oxalá houvesse juízo para atirar fora os sapatos de cada vez que uma pedra, por pequena que fosse, incomodasse os pés. Mais parece que somos masoquistas. Parece que andamos à procura das nossas próprias pedras nos sapatos. É como se fôssemos viciados na dor que desejamos quando as pedras nos sapatos persistem e calcinam os pés com feridas abertas que sangram. Gostamos de ver os pés ensanguentados, a prova de um sofrimento que convoca a comiseração alheia. Eis a chancela maior para a derrota dos que semearam as pedras nos nossos sapatos: a censura de outros que os achem indignos do padecimento causado.


As pedras nos sapatos que se congeminam são, afinal, outra expressão da mediocridade impante. Quem, no seu juízo, inflige dor a si mesmo? As mais das vezes, as pedras nos sapatos eram evitáveis. As mais das vezes, as pedras nos sapatos parecem ser (des)propositadamente semeadas por quem vem depois chorar a sua dor e mendigar a complacência dos outros que, da plateia, se comiseram. Ou, quando o braço de ferro se inclina para o lado favorável, passeiam uma sobranceira vaidade que passa por cima do derrotado, humilhado por ter sido derrotado. Nesse caso, a pedra no sapato deixou de o ser, vertida para o sapato de outros. As pedras, essas, são etéreas.


De que serve esta imbecil competição de sofrimentos?

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