20.5.09

Queria

Queria de ti um país
de bondade e de bruma
Queria de ti o mar
de uma rosa de espuma
Mário de Cesariny

E queria: um império a gotejar todas as palavras mágicas, as palavras enternecedoras, as palavras que rejeitam os vãos sentidos. Queria olhar os teus olhos e colher todas as lágrimas, sorver o amplexo da tristeza. Ter fantásticos poderes para os tornar, olhos e lágrimas, num infinito campo de flores deslumbrantes. Queria saber que não importa a distância se te alcanço à diferença de um braço. Passear pela alva pele e fazer ricochete nos contrafortes da fortaleza que habita em ti.


Queria que os passos fossem de um compasso só. As memórias, um património em partilha. À luz da lua, ou pelos soalheiros dias estivais, abraçar o mundo que se reduz na sua pequenez diante da grandeza que somos. Não importam os passos em falso, nem as vãs expectativas, ou as ilusões que prestam tributo ao sentido literal da palavra. Só um lampejo, no teu sorriso, e é como se uma embriaguez viesse tomar conta de mim, conduzir-me pela mão, eu às cegas, na plena confiança de seres tu guia.


Eu queria que as coisas fossem diferentes. Tomá-las de um trago só quando adversas. Não como se houvesse a quimera de as varrer para debaixo do tapete, que perenes ali ficariam, toda aquela poeira a adensar-se, assombrando a existência. Não era isso; era a capacidade para esconder os maus estados de espírito, deixar levitar até ao altar mais alto de todos a unção do que é nosso. As coisas seriam todas belas, nenhuma palavra se esgotaria na sua inutilidade. Às vezes temos pressa de viver, parece que os fantasmas todos nos perseguem à espera de decepar as cores iluminadas da tela que temos nas mãos. E o que interessa se vivemos depressa ou devagar? O juízo será num momento em que já não há regresso para corrigir o que houver de ficar sentenciado.


Só queria que tudo ficasse despojado da sua complexidade. Queria que a simplicidade tomasse as rédeas e encomendasse o funeral das complicadas coisas entre mãos. A complexidade é a sentença letal que absorve todas as gotas da sumarenta existência. O que eu queria? Que a existência não teimasse nas coisas complexas, exangue de forças, mirrada pelas folhas do calendário que esvoaçam a lembrar que diante há o precipício de onde o regresso se anuncia impossível.


Às vezes o tempo é gasto em desperdícios. Desperdiçamo-nos, vidas estilhaçadas pela inutilidade das coisas insignificantes. É quando repousamos lado a lado e parece que um imenso oceano se interpôs. Não curo de saber se há cura para estes males. Não curo de tratar do diagnóstico. As paredes deslavadas retêm os silêncios que consomem a poderosa alvura das palavras que não chegam a ser ditas. Eu queria: que as palavras fossem gritadas até à exaustão. Queria que irrompessem, vazassem os silêncios mortais.


Pela aurora, quando o dia se renovasse, tudo seria diferente mercê da vontade de mudar. Acompanharíamos os primeiros raios do sol nascente com a mesma sede de reinvenção de nós. Faríamos do sol testemunha do pesar pelos pesares de outrora. Mas o que contam os pesares, senão o ensurdecedor ruído das palavras com dor, ou os ensurdecedores silêncios quando a boca pedia uma palavra, por vã que fosse?


Pelo silêncio da alvorada, só rompido pelo chilrear dos madrugadores pássaros, a terra toda seria nossa, a consagração da nossa imensidão. Até que não houvesse lugar aos lamentos, nem à urgência de desculpas – que as desculpas se consomem pela intemporalidade dos passos errantes. Tudo seria selado com um silêncio que substituísse todas as palavras que conseguíssemos roubar ao dicionário. Um silêncio pousado nos lábios sedentos. E quero.

1 comentário:

Milu disse...

Muito lindo! Há pessoas que sabem sentir de uma forma especial e por isso escrevem coisas magníficas, que comovem! Também eu gostava de saber escrever assim, porém, quando a isso me dedico apenas consigo fazer rir. Foge-me o jeito muito mais para a comicidade da vida, até de mim faço troça! Será que é uma forma de defesa? Tenho pensado bastante nisto...