(Na sequência deste texto)
O pessoal desencanto com a investigação científica vem alimentado por um modismo actual: há por aí muito investigador que confunde ciência com o vencimento de causas pessoais. Confundem ideologia com ciência, como se a ciência fosse o braço armado das preferências ideológicas. Sem hesitações, consideram-se arquitectos da mudança desejada para a sociedade tão imperfeita. Como se a ciência que fazem fosse o maravilhoso bálsamo que erradica as impurezas da sociedade. Um projecto que leva o seu tempo, concedem. Ou lá se extinguiria a necessidade da sua tão presciente ciência.
Tenho problemas com o método. Causa-me espécie que os investigadores se tenham em tão elevada consideração. Meteram na cabeça que são uma elite. Exibem os muito elevados quocientes intelectuais, a par com a erudição que esbofeteiam, com sobranceria, nos incautos – o povaréu que devia ser guiado pela sua predestinada mão. À falta de amesendarem com o poder, pois com razão repugna-os a vilania que pontifica no meio partidário, procuram influenciar de fora, através da ciência que fazem, escudados no prestígio que chamam a si.
Também me incomoda a pesporrência com que olham o mundo, lá do seu púlpito intelectual, e transformam as suas preferências em imperativos categóricos que os demais deviam respeitar. É todo um método impregnado de totalitarismo intelectual. O mal é que depois ensaiam lições sobre democracia e valores adjacentes – a ética da tolerância, que não passa de esvaziada retórica. São a versão moderna do Frei Tomás. Os que mais me causam perplexidade são os que misturam ciência com educação. É a investigação que desagua em manuais educativos, ensinando as massas a serem educadas para se transformarem em gente melhor.
Como podem estes excelsos programas educativos não reflectir as preferências individuais dos seus feitores? E quem nos assegura – para além dos próprios feitores, mas esses sem se conseguirem desligar da sua parcialidade – que aquela mundividência é a acertada? Esses roteiros não são uma insidiosa estratégia para enviesar a sociedade, inclinando-a para certas visões e excluindo outras? Estes condutores de almas são como sacerdotes. Tal como os curas de religiões várias teimam em ensinar aos crentes o que devem e não devem fazer (com preferência para as proibições, que deixam vir à superfície o poder que detêm), os investigadores servem-se da sua ciência e aconselham os caminhos ideais para o mundo se tornar um lugar mais respirável.
Eis o que não bate certo. Primeiro, quem nos assegura que estes investigadores são senhores da razão, penhores das verdades convenientes que a turba deve acatar sem desvios? Não podem estas iluminadas mentes estar erradas no que defendem? Ou será a sua elevada erudição e estaleca intelectual caução suficiente para não se questionar a ciência que produzem e as preferências ideológicas que lá transpiram? Segundo, quando os investigadores teimam neste activismo científico adulteram a ciência. Nas ciências sociais, bem entendido, onde a subjectividade grita a pulmões inteiros, gizar planos com a perfeição que é a antítese da condição humana só serve para alimentar desconfianças. Paira sempre uma suspeita: a história está cheia de episódios de reconfiguração do mundo, planos impregnados de certezas que se supunham inabaláveis e que depois pavimentaram métodos lamentáveis para atingir os fins propostos. Nesses episódios, os cientistas emprestaram um lastro intelectual. E quando os cientistas, com o prestígio que chamam a si, sentenciam verdades, só há um lugar destinado aos que ousarem na dissidência: a ostracização, que não passa de outra manifestação da sobranceria típica dos senhores da superior erudição.
Desconfio desta ciência interventiva, desta ciência que fabrica os moldes milimétricos da sociedade. Essa ciência interventiva traz sempre a marca subjectiva dos seus arquitectos. Que assim deixam a peugada no que pretendem mudar. Nem vale a pena perder tempo a sublinhar como entram em contradição quando ostentam as suas superiores credenciais democráticas: as mudanças que pretendem fazer pelo traço da sua ciência são a negação da democrática transformação da sociedade. Bem vistas as coisas, não há surpresa: tão deslumbrados com a sua presciência, nem dão conta que escorregam para lamentáveis métodos. Sobra-lhes em incoerência tanto de pesporrência quando se encavalitam na putativa condição de ensinadores de ética.
Fazer ciência não é intervenção, não é ter muito bem-intencionados planos para transformar a sociedade, torná-la melhor. Enquanto tiver que fazer ciência, a minha há-de ser de diagnóstico. As soluções miraculosas, deixo-as para vendedores de banha da cobra.
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