15.5.09

Para contrabalançar o iberismo: a Espanha não tem sentido


Já aqui lancei provocações iberistas, revolvendo os fígados das almas genuinamente lusitanas, aquelas que reclamam o puro-sangue que as distingue do perene inimigo espanhol. Não venho agora confessar remorsos nacionalistas que me movem a flagelar a prosápia hispânica. Os motivos são outros: o libertário compraz-se quando nota o perfume da desagregação das nações que se ufanam como se majestosos impérios fossem. Acaso se note alguma contradição de termos (como pode alguém assinar um texto iberista e mais tarde reclamar a artificialidade da Espanha?), antecipo explicações: oportunismo (do salutar).


Leio que o director de desporto da TVE quis poupar o vaidoso nacionalismo espanhol ao vexame de uma vaia colectiva durante o hino antes da final da taça de Espanha. O soberano marcava presença, para dignificar o evento com a sua exímia figura que, é predicado das monarquias, exige indisputável respeito dos suseranos; aliás a taça tem o seu nome ("taça do rei": mas a taça é do rei, é dele?). O problema é que as equipas na final da competição eram as equipas erradas: uma basca e outra catalã, ambas mostruários de nacionalismos arreigados. Como não se brinca com coisas sérias, e a monarquia tem uma certa aura divina, o burocrata de serviço cortou o sinal da transmissão assim que deu conta dos primeiros assobios em dueto com os acordes iniciais do hino.


A censura é censura. Sempre. Mesmo quando a cabeça dos diligentes censores da democracia é povoada por instintos que apreciam da maior nobreza. Este episódio é a grotesca manifestação de uma certa deificação da hispanidade, de que a realeza do sítio se considera cimento supremo. Se ambos os esteios são ofendidos numa cerimónia pública, actue a censura. Ponha-se a democracia e a tolerância dos dissidentes em banho-maria. Ao menos, toda aquela gente freneticamente espanhola foi poupada ao pesar da infâmia dos hereges que se querem emancipar da Espanha imperial: era o que mais faltava serem testemunhas da injuriosa vaia ao sagrado hino.


Os nacionalismos são uma alcateia que devora a racionalidade humana. Não só os nacionalismos dominantes, aqueles que convocam a si a aura imperial e asfixiam os nacionalismos emergentes. Estes também têm o seu quê de demoníaco. Frequentemente, radicalizam-se e confundem meios com fins, incapazes de apurar a legitimidade dos meios, sobretudo dos que espalham hipócrita terror. Uns e outros, os nacionalismos empenham o livre arbítrio. Os fautores dos nacionalismos servem-se de imperativos categóricos: pertencemos a uma nação, emancipada ou apenas oprimida pelo invasor que tomou conta dessa terra. Pertencemos. Deixamos de ser individualidades.


O equívoco é pertencermos a uma nação qualquer. Identidade não é pertença. Impor a pertença hipoteca a individualidade dos seres, reduzidos a uma massa anónima que representa o "povo" que se irmana na mesma nacionalidade e está (ou, convencem-nos, deve estar) disposto a dar o corpo às balas em nome da amada nação. O erro está aí: nos muitos iludidos que não distinguem identidade de pertença e que se entregam acriticamente à causa do nacionalismo em que militam. Quando dão conta, perderam o rasto à racionalidade. Nisto não há diferenças entre nacionalismos exacerbados e religiosidades intensas.


São repugnantes os métodos dos terroristas da ETA. Não se deve confundir a árvore com a floresta, nem aceitar que um punhado de violentos mantenha sitiada a sociedade basca no estertor da violência covarde. A sede de independência não se restringe aos violentos da ETA. Como há quem peça dessa água na Catalunha, na Galiza, até na Andaluzia. Os lamentáveis nacionalistas espanhóis refugiam-se numa certeza cega: os espanhóis querem preservar a unidade da Espanha. E como se asseguram da validade dessa conclusão? Por acaso não são tementes de um referendo que pergunte a quem tem aspirações independentistas se aceita a independência?


A censura da vaia ao hino é do mais abjecto que a democrática censura tem para mostrar. Mas como é democrática, é como se não fosse censura – acreditam os querubins do costume, democratas de meia-tijela. Erro crasso: a censura é sempre censura, venha ou não com o lastro da democracia. É mais perigosa a censura exercida sob a protecção solar da democracia, pois é contrária ao seu código genético. Perante isto, o que apetece é fazer figas para que a imperial Espanha se esboroe e deixe no ar apenas a poeira da sua vetusta e fátua grandeza. Seria o ocaso da imperial Espanha e a emergência de nacionalidades por ora oprimidas. Duvido, contudo, que os novos nacionalismos tivessem uma espessura diferente do nacionalismo espanhol. Não deixavam de ser nacionalismos. O mal está lá todo. Porém, para o libertário, a desagregação de um país com vaidade imperial é sempre uma boa nova.

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