8.3.18

A tatuagem com erro ortográfico


The Breeders, “No Aloha” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=bnoY_WSkhm0    
Logo ele, sempre adversário de tudo o que fosse irremediável e perene, tirou as medidas a uma jura para selar outra jura em forma de tatuagem. Haveria de inscrever sobre o ombro direito,
Não há maior obsessão do que a miragem do tempo.
Queria ter a certeza que não fugia à interior promessa, para não se achar espartilhado entre as juras sem fim e o chão delas deserto. Dispensava a incómoda impressão de andar em círculos, num labirinto ortodoxo e sem saída à vista. Dispensava ter de passar grande parte do tempo a recuar à casa da partida, desde que soubesse que tinha de começar a partir de uma folha em branco. Sentia-se refém de constantes adiamentos. Uma emboscada de que era a única vítima.
(A menos que não se importasse com o fingimento do tempo e procrastinar fosse do âmbito da sua peritagem. Não seria espécime único. Só não sabia se os outros eram bitola a considerar, ou bitola irrelevante.)
Foi de visita ao tatuador. Um homem que rimava com o estereótipo dos tatuadores (pelo menos, a fazer fé no estereótipo dos tatuados, antes de as tatuagens assumirem foros de moda e serem transversais, destruindo o mito dos tatuados): barba farfalhuda, grossos bíceps espreitando desde as finas alças da camisola negligentemente gasta, clara ostentação das prolixas tatuagens que preenchiam a pele, o cabelo longo, como dos groupies de heavy metal. Um homem pouco falador e com cara de poucos amigos. As poucas palavras que trocou com o candidato à tatuagem foram estas: “a minha vida é tatuar gente. Admito que me enche de contentamento deixar um selo pessoal na pele das pessoas. O meu selo, permanente.
Acordaram a empreitada. Ele disse que queria uma inscrição a tinta preta, com letra artística (ao critério do tatuador), com a seguinte frase:
Não há maior obsessão do que a miragem do tempo.
O tatuador perguntou se a tinha escrito em papel. “Não. Confio em si. Está à vontade com o idioma, não está?” O tatuador mostrou indiferença à pergunta, enquanto escrevia, ele próprio, a frase desejada pelo cliente contracapa de uma revista de motas: “fiquei em ‘maior obsessão’; como termina a frase?
Despida a camisola e desinfetada a área que se preparava para receber a tatuagem, não foi acometido por um arrependimento de última hora. Ficou admirado. Foram tantas as vezes em que, depois de revolver o pensamento em sucessivas camadas de hesitações, por fim tomara uma decisão, sem que, todavia, no derradeiro instante salivasse um gutural arrependimento que quase determinava a marcha-atrás. Desta vez, estava seguro do que queria. Uma tatuagem, o seu pessoal notário. Enquanto sentia a agulha a percutir a pele, injetando pequenos fogachos de tinta, não havia sequer um lampejo de dor. Os seus consultores de tatuagens teriam pecado por excesso nas advertências. “É sempre melhor assim:” – interiorizou, enquanto a cabeça repousava sobre as mãos entrelaçadas e se dava à confeção da tatuagem–“preparamo-nos para o pior e temos a certeza que tudo se passará por uma craveira menor.
Terminada a função, o tatuador fotografou-o com o telemóvel, para a prova dos nove. Ele viu o ombro carregando, em letras góticas e maiúsculas, o seguinte dizer:
NÃO Á MAIOR OBCESSÃO DO QUE A MIRAGEM DO TEMPO.
Enfurecido, insultou o tatuador: “ó sua besta, não sabe escrever? Como é possível, dois erros na mesma frase? Digo-lhe já que não será pago por este trabalho merdoso.” O tatuador ripostou, em demanda dos erros. Informado sobre a sua existência, rematou a conversa com uma serenidade budista: “É desde a escola. Nunca sei quando ‘há’ leva ‘h’. Maldito idioma, que mais parece um ninho de armadilhas. Já o outro erro, tem a certeza? Se se escreve ‘obcecado’, porque não se pode escrever ‘obcessão’?    

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