Felt, “Primitive Painters”,
in https://www.youtube.com/watch?v=sCRdY7ZH7xo
Não faltava muito para o sol romper
a ditadura da noite. A mulher de limpeza começava a faina, tão cedo. Cruzou-se
com dois homens que cambaleavam, rua fora, ainda com as garrafas de cerveja na
mão. “Estroinas...”, saiu-lhe, em
reprovação mental, instintivamente. Logo a seguir, enquanto pegava nas artes de
limpeza, não conseguiu reprimir memórias da juventude. Memórias de quando era,
ela própria, estroina.
Absorta nas tarefas de limpeza, feitas
mecanicamente, como se fosse um autómato, viu a tela do pensamento ocupada por muitas
dessas memórias. Elas iam desfiando como um novelo entre as mãos, não sendo
capaz de as segurar para o novelo não continuar o seu desfiar incessante. Incessante
e malévolo. Recuar a esses tempos de loucura, às vezes saudável, outras vezes
destemperada, era a aceitação da decadência atual. A vida fora madrasta. Tivera
tudo para levar uma vida melhor. Deitou tudo a perder. Reconhecia que era a
maior culpada na desoportunidade. Só que um demónio interior, em tentativa de
tomada de assalto da sua vontade, teimava em sussurrar que não, que não fora
ela a tutora da culpa – teriam sido as circunstâncias jogando-se a seu
desfavor. Que interessava o pleito? Estava à porta dos sessenta anos, com um
emprego miserável que a obrigava a começar a trabalhar a desoras e a deitar-se
também a desoras – era como se este emprego (o único que conseguiu depois de
muitas tentativas fracassadas) fosse responsável pelo anestesiar da sua vida. Na
prática, vivia a desoras; ou, como às vezes protestava consigo mesmo, era como
se a hibernação tivesse tomado conta da sua existência. Logo a seguir, concluía:
do mal o menos, pelo estalão da vida decadente e trivial, antes passar à sua
ilharga do que ser por ela impiedosamente fustigada. Às vezes, só importa
fingir.
Mas as memórias estavam em maré viva.
Sobrepunham-se ao demais. Era uma tortura. O grito lancinante que evocava o
abismo entre a vida vivida em velocidade vertiginosa, sem medo dos descampados para
onde podia ser atirada, e o marasmo atual. Num correr do tempo, misturavam-se
as recordações da aluna irreverente, uma das primeiras meninas da escola a
fumar sem ser às escondidas, do sexo antes de todas as outras, da promiscuidade
que lhe valeu uns epítetos desagradáveis (que ignorou olimpicamente, para não
destemperar a liberdade que tanto prezava), das drogas, até as duras, das
noites dormidas sem saber onde, das oportunidades perdidas em descasamento com
as capacidades que não quis aproveitar, do precipício que fora o internamento
no hospital, da gravidez inesperada e de um bebé que morreu com três meses de
idade (mais tarde admitiu, por duro que fosse admiti-lo: ainda bem que pereceu
cedo de mais, para não ser atirado ao circo de loucuras em que continuou a
transitar). Enfim, os meses de prisão por ter sido apanhada a roubar numa loja
de roupa. E a longa travessia no deserto que coincidiu com as muitas portas
fechadas, por toda a gente (família e amigos), sentindo-se proscrita, acatando
com resignação como a fatura a pagar pela demência de outrora.
Os homens embriagados tinham feito
uma pausa ao cimo da rua. Estavam cansados e continuavam a beber. Um deles, o
de cabelo curto, não parava de coçar um ombro. O outro, corpulento, barbudo e
com longa cabeleira, limitava-se a olhar para o céu, como se estivesse a entoar
uma prece qualquer. A mulher interrompeu os pensamentos. Desta vez, reprimiu a instintiva
reprovação dos boémios. No fundo, era de inveja que se tratava. Quem lhe dera
recuar aos anos loucos da juventude. Faria tudo na mesma.
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