12.3.18

A inveja que faz mossa


Felt, “Primitive Painters”, in https://www.youtube.com/watch?v=sCRdY7ZH7xo    
Não faltava muito para o sol romper a ditadura da noite. A mulher de limpeza começava a faina, tão cedo. Cruzou-se com dois homens que cambaleavam, rua fora, ainda com as garrafas de cerveja na mão. “Estroinas...”, saiu-lhe, em reprovação mental, instintivamente. Logo a seguir, enquanto pegava nas artes de limpeza, não conseguiu reprimir memórias da juventude. Memórias de quando era, ela própria, estroina.
Absorta nas tarefas de limpeza, feitas mecanicamente, como se fosse um autómato, viu a tela do pensamento ocupada por muitas dessas memórias. Elas iam desfiando como um novelo entre as mãos, não sendo capaz de as segurar para o novelo não continuar o seu desfiar incessante. Incessante e malévolo. Recuar a esses tempos de loucura, às vezes saudável, outras vezes destemperada, era a aceitação da decadência atual. A vida fora madrasta. Tivera tudo para levar uma vida melhor. Deitou tudo a perder. Reconhecia que era a maior culpada na desoportunidade. Só que um demónio interior, em tentativa de tomada de assalto da sua vontade, teimava em sussurrar que não, que não fora ela a tutora da culpa – teriam sido as circunstâncias jogando-se a seu desfavor. Que interessava o pleito? Estava à porta dos sessenta anos, com um emprego miserável que a obrigava a começar a trabalhar a desoras e a deitar-se também a desoras – era como se este emprego (o único que conseguiu depois de muitas tentativas fracassadas) fosse responsável pelo anestesiar da sua vida. Na prática, vivia a desoras; ou, como às vezes protestava consigo mesmo, era como se a hibernação tivesse tomado conta da sua existência. Logo a seguir, concluía: do mal o menos, pelo estalão da vida decadente e trivial, antes passar à sua ilharga do que ser por ela impiedosamente fustigada. Às vezes, só importa fingir.
Mas as memórias estavam em maré viva. Sobrepunham-se ao demais. Era uma tortura. O grito lancinante que evocava o abismo entre a vida vivida em velocidade vertiginosa, sem medo dos descampados para onde podia ser atirada, e o marasmo atual. Num correr do tempo, misturavam-se as recordações da aluna irreverente, uma das primeiras meninas da escola a fumar sem ser às escondidas, do sexo antes de todas as outras, da promiscuidade que lhe valeu uns epítetos desagradáveis (que ignorou olimpicamente, para não destemperar a liberdade que tanto prezava), das drogas, até as duras, das noites dormidas sem saber onde, das oportunidades perdidas em descasamento com as capacidades que não quis aproveitar, do precipício que fora o internamento no hospital, da gravidez inesperada e de um bebé que morreu com três meses de idade (mais tarde admitiu, por duro que fosse admiti-lo: ainda bem que pereceu cedo de mais, para não ser atirado ao circo de loucuras em que continuou a transitar). Enfim, os meses de prisão por ter sido apanhada a roubar numa loja de roupa. E a longa travessia no deserto que coincidiu com as muitas portas fechadas, por toda a gente (família e amigos), sentindo-se proscrita, acatando com resignação como a fatura a pagar pela demência de outrora.
Os homens embriagados tinham feito uma pausa ao cimo da rua. Estavam cansados e continuavam a beber. Um deles, o de cabelo curto, não parava de coçar um ombro. O outro, corpulento, barbudo e com longa cabeleira, limitava-se a olhar para o céu, como se estivesse a entoar uma prece qualquer. A mulher interrompeu os pensamentos. Desta vez, reprimiu a instintiva reprovação dos boémios. No fundo, era de inveja que se tratava. Quem lhe dera recuar aos anos loucos da juventude. Faria tudo na mesma.

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