Ezra Furman, “Restless Year”,
in https://www.youtube.com/watch?v=NDOenFQazrA
Na mesa ao lado dos dois
defenestrados, o tatuador esperava por alguém. Estava absorto, apenas
interrompendo esse estado quando dava pequenos goles na bebida. Não ficou
indiferente à conversa. Apesar de não gostar de se intrometer em conversas
alheias, e dar confiança a estranhos não ser seu timbre, ofereceu um palpite
quando um dos homens jurava a pés juntos que não voltava a ser revolucionário.
- Tenho estado a ouvir a vossa conversa (disse, suscitando a
perplexidade imediata dos outros dois, que não contavam com a intrusão). Tenho a impressão que os senhores estão
deitados nos braços do desdém. Lá no fundo, ainda não aceitaram o despejo das
fileiras por onde transitaram. Vou ser cru: se fosse dada a oportunidade, e
houvesse um milagre que fizesse as pazes, iam a correr de braços abertos para
quem vos renegou, para quem renegam.
Os outros dois, toldados pelos copos que já
iam a caminho do excesso, não se importunaram com a provocação do tatuador. Se estivessem
sóbrios, teriam, pelo menos, questionado a intromissão na conversa. O revolucionário
descamisado interpelou o tatuador:
- Até parece que tem o senhor algum conhecimento de causa.
O ecologista renegado juntou-se à
conversa:
- E mesmo que tenha conhecimento de causa, não há dois casos iguais. Como
pode usar uma bitola ao acaso para nos aferir?
O tatuador, impaciente com a
demora da sua atrasada companhia, disparou secamente:
- Este é daquele casos em que se vê à distância a patologia.
- Posto nesses termos, é um ultraje. Por quem nos toma?, reagiu, também
desabridamente, o ecologista renegado.
- Se soubessem...já foram tantas as personagens recalcadas com que me
cruzei, e demoradamente.
- Mesmo assim – ripostou o revolucionário descamisado – como pode extrapolar com tanta ligeireza? A
menos que seja um perito em comportamentos humanos; e mesmo assim, a ciência não
é exata, abre-se à contestação dos diagnósticos.
O tatuador levantou-se e, sem
pedir licença, juntou-se aos outros dois homens, sentado entre eles. Só voltou
atrás por um momento para recuperar a caneca de cerveja que ainda ia a meio.
Mais calmo, acrescentou:
- Se a autoridade dos meus argumentos depende dos pergaminhos, aqui os
apresento: tenho estudos de antropologia. São suficientes as credenciais, ou têm-me
como mentiroso?
- Deixemo-nos de hostilidade. Não posso deixar de interiorizar o desafio presente
nas suas palavras iniciais. Pergunto-me: se houvesse um armistício com os meus
antigos camaradas ecologistas, e se eles aceitassem que eu continuava a ser
dono de um Porsche (a minha linha vermelha), regressava ao grupo?
- É interessante a formulação – disse o revolucionário descamisado. Eu não reagi desse modo. Julgo que há uma
explicação: tu foste defenestrado há menos tempo, ainda vives as dores da exclusão;
eu fui expulso há mais tempo e, confesso, já nem lembro dessa pertença. Por isso,
nem prestei atenção ao desafio do amigo cabeludo e tatuado.
O tatuador elaborou, em defesa do
seu argumento: Continuo a dizer que até o
senhor, que parece tão relutante que não admite as feridas que o meu desafio
abriu, repensava se houvesse a oportunidade de reconciliação. As ideias que
formatam uma pessoa não se renegam. Nem que sejam alguns anos os passados desde
a – como disse? – defenestração.
O ecologista renegado sentiu-se
sitiado pela hesitação do pensamento. Ao contrário, o revolucionário descamisado
exteriorizava uma convicção firme. O tatuador adensou a provocação intelectual:
- Isto não tem nada a ver com o tempo de despertença. Tem a ver com subjetividade.
Com a firmeza das convicções entretanto abandonadas, ou pelo menos metidas em
hibernação. O senhor (virando-se para o revolucionário descamisado) não estaria tão seguro dos alicerces das
suas ideias. Quer-me convencer que dantes era revolucionário e agora
transfigurou-se em burguês? Que todos os sedimentos ideológicos foram extintos?
Não creio que esta negação seja possível – a menos que tenha caído em auto negação.
O revolucionário descamisado
mostrou incómodo, alguma exaltação física que pressagiava uma altercação
iminente. O ecologista renegado, em mal conhecendo os outros homens, mostrou-se
apaziguador.
- Vamos mostrar respeito uns pelos outros. O senhor das tatuagens, que não
nos conhece de lado nenhum, está a passar dos limites.
- Não seja por isso. Deixo-vos entretidos com essa mágoa terrivelmente
destrutiva.
Ato contínuo, levantou-se, pagou
e saiu do bar. O silêncio durou alguns minutos. Os necessários para o
revolucionário descamisado se recompor. O ecologista renegado concluiu:
- Esta gente que se julga um oráculo dos meandros dos outros também me
tira do sério.
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