19.3.18

E se o espírito de contradição não fosse uma provocação?


Ezra Furman, “Restless Year”, in https://www.youtube.com/watch?v=NDOenFQazrA    
Na mesa ao lado dos dois defenestrados, o tatuador esperava por alguém. Estava absorto, apenas interrompendo esse estado quando dava pequenos goles na bebida. Não ficou indiferente à conversa. Apesar de não gostar de se intrometer em conversas alheias, e dar confiança a estranhos não ser seu timbre, ofereceu um palpite quando um dos homens jurava a pés juntos que não voltava a ser revolucionário.
- Tenho estado a ouvir a vossa conversa (disse, suscitando a perplexidade imediata dos outros dois, que não contavam com a intrusão). Tenho a impressão que os senhores estão deitados nos braços do desdém. Lá no fundo, ainda não aceitaram o despejo das fileiras por onde transitaram. Vou ser cru: se fosse dada a oportunidade, e houvesse um milagre que fizesse as pazes, iam a correr de braços abertos para quem vos renegou, para quem renegam.
 Os outros dois, toldados pelos copos que já iam a caminho do excesso, não se importunaram com a provocação do tatuador. Se estivessem sóbrios, teriam, pelo menos, questionado a intromissão na conversa. O revolucionário descamisado interpelou o tatuador:
- Até parece que tem o senhor algum conhecimento de causa.
O ecologista renegado juntou-se à conversa:
- E mesmo que tenha conhecimento de causa, não há dois casos iguais. Como pode usar uma bitola ao acaso para nos aferir?
O tatuador, impaciente com a demora da sua atrasada companhia, disparou secamente:
- Este é daquele casos em que se vê à distância a patologia.
- Posto nesses termos, é um ultraje. Por quem nos toma?, reagiu, também desabridamente, o ecologista renegado.
- Se soubessem...já foram tantas as personagens recalcadas com que me cruzei, e demoradamente.
- Mesmo assim – ripostou o revolucionário descamisado – como pode extrapolar com tanta ligeireza? A menos que seja um perito em comportamentos humanos; e mesmo assim, a ciência não é exata, abre-se à contestação dos diagnósticos.
O tatuador levantou-se e, sem pedir licença, juntou-se aos outros dois homens, sentado entre eles. Só voltou atrás por um momento para recuperar a caneca de cerveja que ainda ia a meio. Mais calmo, acrescentou:
- Se a autoridade dos meus argumentos depende dos pergaminhos, aqui os apresento: tenho estudos de antropologia. São suficientes as credenciais, ou têm-me como mentiroso?
- Deixemo-nos de hostilidade. Não posso deixar de interiorizar o desafio presente nas suas palavras iniciais. Pergunto-me: se houvesse um armistício com os meus antigos camaradas ecologistas, e se eles aceitassem que eu continuava a ser dono de um Porsche (a minha linha vermelha), regressava ao grupo?
- É interessante a formulação – disse o revolucionário descamisado. Eu não reagi desse modo. Julgo que há uma explicação: tu foste defenestrado há menos tempo, ainda vives as dores da exclusão; eu fui expulso há mais tempo e, confesso, já nem lembro dessa pertença. Por isso, nem prestei atenção ao desafio do amigo cabeludo e tatuado.
O tatuador elaborou, em defesa do seu argumento: Continuo a dizer que até o senhor, que parece tão relutante que não admite as feridas que o meu desafio abriu, repensava se houvesse a oportunidade de reconciliação. As ideias que formatam uma pessoa não se renegam. Nem que sejam alguns anos os passados desde a – como disse? – defenestração.
O ecologista renegado sentiu-se sitiado pela hesitação do pensamento. Ao contrário, o revolucionário descamisado exteriorizava uma convicção firme. O tatuador adensou a provocação intelectual:
- Isto não tem nada a ver com o tempo de despertença. Tem a ver com subjetividade. Com a firmeza das convicções entretanto abandonadas, ou pelo menos metidas em hibernação. O senhor (virando-se para o revolucionário descamisado) não estaria tão seguro dos alicerces das suas ideias. Quer-me convencer que dantes era revolucionário e agora transfigurou-se em burguês? Que todos os sedimentos ideológicos foram extintos? Não creio que esta negação seja possível – a menos que tenha caído em auto negação.
O revolucionário descamisado mostrou incómodo, alguma exaltação física que pressagiava uma altercação iminente. O ecologista renegado, em mal conhecendo os outros homens, mostrou-se apaziguador.
- Vamos mostrar respeito uns pelos outros. O senhor das tatuagens, que não nos conhece de lado nenhum, está a passar dos limites.
- Não seja por isso. Deixo-vos entretidos com essa mágoa terrivelmente destrutiva.
Ato contínuo, levantou-se, pagou e saiu do bar. O silêncio durou alguns minutos. Os necessários para o revolucionário descamisado se recompor. O ecologista renegado concluiu:
- Esta gente que se julga um oráculo dos meandros dos outros também me tira do sério.

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