23.3.18

No frio sozinho que mata


Dick Stusso, “Modern Music”, in https://www.youtube.com/watch?v=tJBqGe88-9A    
Já era quase hora de o sol se levantar. O tatuador não estava na cama há muito tempo. Os hábitos noctívagos pesavam na rotina do sono. Desta vez, ao contrário do habitual, estava às voltas com uma insónia. Mexia-se na cama, tentava isolar o pensamento num vazio, e o sono continuava contumaz. Por mais que ensaiasse o ardil do pensamento no vácuo – é o que acontece quando os olhos se fecham e mentalmente se domina o pensamento de modo a não pensar em nada. Mas os sentidos estavam de atalaia. Ainda se levantou e bebeu um copo de água – dizem que afugenta a insónia. Para nada. Depois foi à janela e começou a entrever no fio do horizonte a primeira claridade que rompia com a noite.
Não queria admitir, mas um pensamento sobrepunha-se ao resto, até ao exercício do metódico pensamento esvaziado de pensamento: nos últimos tempos, foram vezes de mais que se pôs no papel de guru dos outros, de “voz da consciência” para inaugurar as interrogações que os outros deviam colocar a si mesmos. Parecia um paradigma de qualquer coisa. Não era. Todos os conselhos que prestara, todas as provocações que enfureceram os interlocutores, todas as lições que esboçara no seu elevado estirador ético – tudo se resumia a um imenso nada, um embuste. Se havia papel que podia reclamar, era o de antítese de paradigma. Eram os frios lençóis da cama, os frios lençóis que convocavam o corpo cansado, que davam o aval a esta dolorosa leitura.
E, todavia, quando vinham à lembrança memórias recentes, os episódios em que se emproara ao lugar de aconselhador dos outros, descaía no mesmo: revolvia-se em perguntas atrás de perguntas, elucubrava cenários, fazia e desfazia telas imaginárias com explicações que se atropelavam em explicações sobre os comportamentos dos outros, sobre o porquê de eles não serem aquilo que ele aconselhava ser, mesmo que no silêncio sepulcral do seu íntimo soubesse que nunca soubera ser o recomendado. Talvez este método fosse um lamento pessoal. A admissão da sua imensa falibilidade. Projetava nos outros aquilo que ele sabia não ser, que não conseguir ser. Os outros por ele aconselhados eram a válvula de escape, o oportunismo para tentar ser diferente.
Acabava sobressaltado por uma angústia excruciante. Os outros questionavam-no (quantas vezes ouvira, nos últimos tempos, uma interpelação indignada dos outros, a ele dirigida: “eu pedi-te para dares opiniões sobre a minha vida?”) e não seguiam os seus muito sábios conselhos, nem se reviam na sua hermenêutica dos outros. Era quando se sentia terrivelmente sozinho. Se os outros recusavam os seus préstimos, ele não tinha como se ajudar por intermédio da ajuda que prestava aos outros. Era um ciclo vicioso, sem saída, o pior dos labirintos.
Incomodava-o outro paradoxo sem explicação convincente: quando olhava em retrospetiva para a vida, não tinha arrependimentos que o consumissem, não encontrava passagens que envergonhassem, não se podia dizer que ele era uma pessoa não recomendável; de igual modo, não se lembrava de proezas que constituíssem motivo de orgulho. Era, a vida dele, uma vida como a de tanta outra gente. Se alguém perguntasse como desenharia a diferença, não tinha resposta. Estava contente com a vida que levava. Contudo, este afã de ajudar os outros, reconhecendo que através dessa ajuda estava a estender a mão a si mesmo, não quadrava com o anterior. Se não queria mudar nada na vida, como explicava a urgência de ser guru dos outros e, desse modo, recolher frutos que fossem em seu proveito?

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