The Breeders, “No Aloha”
(live), in https://www.youtube.com/watch?v=bnoY_WSkhm0
Logo ele, sempre adversário de
tudo o que fosse irremediável e perene, tirou as medidas a uma jura para selar
outra jura em forma de tatuagem. Haveria de inscrever sobre o ombro direito,
Não há maior obsessão do que a miragem do tempo.
Queria ter a certeza que não
fugia à interior promessa, para não se achar espartilhado entre as juras sem
fim e o chão delas deserto. Dispensava a incómoda impressão de andar em círculos,
num labirinto ortodoxo e sem saída à vista. Dispensava ter de passar grande
parte do tempo a recuar à casa da partida, desde que soubesse que tinha de
começar a partir de uma folha em branco. Sentia-se refém de constantes
adiamentos. Uma emboscada de que era a única vítima.
(A menos que não se importasse
com o fingimento do tempo e procrastinar fosse do âmbito da sua peritagem. Não seria
espécime único. Só não sabia se os outros eram bitola a considerar, ou bitola
irrelevante.)
Foi de visita ao tatuador. Um homem
que rimava com o estereótipo dos tatuadores (pelo menos, a fazer fé no estereótipo
dos tatuados, antes de as tatuagens assumirem foros de moda e serem
transversais, destruindo o mito dos tatuados): barba farfalhuda, grossos bíceps
espreitando desde as finas alças da camisola negligentemente gasta, clara
ostentação das prolixas tatuagens que preenchiam a pele, o cabelo longo, como
dos groupies de heavy metal. Um homem pouco falador e com cara de poucos amigos. As
poucas palavras que trocou com o candidato à tatuagem foram estas: “a minha vida é tatuar gente. Admito que me
enche de contentamento deixar um selo pessoal na pele das pessoas. O meu selo, permanente.”
Acordaram a empreitada. Ele disse
que queria uma inscrição a tinta preta, com letra artística (ao critério do
tatuador), com a seguinte frase:
Não há maior obsessão do que a miragem do tempo.
O tatuador perguntou se a tinha
escrito em papel. “Não. Confio em si. Está
à vontade com o idioma, não está?” O tatuador mostrou indiferença à
pergunta, enquanto escrevia, ele próprio, a frase desejada pelo cliente contracapa
de uma revista de motas: “fiquei em ‘maior
obsessão’; como termina a frase?”
Despida a camisola e desinfetada
a área que se preparava para receber a tatuagem, não foi acometido por um
arrependimento de última hora. Ficou admirado. Foram tantas as vezes em que,
depois de revolver o pensamento em sucessivas camadas de hesitações, por fim
tomara uma decisão, sem que, todavia, no derradeiro instante salivasse um
gutural arrependimento que quase determinava a marcha-atrás. Desta vez, estava
seguro do que queria. Uma tatuagem, o seu pessoal notário. Enquanto sentia a
agulha a percutir a pele, injetando pequenos fogachos de tinta, não havia sequer
um lampejo de dor. Os seus consultores de tatuagens teriam pecado por excesso
nas advertências. “É sempre melhor assim:”
– interiorizou, enquanto a cabeça repousava sobre as mãos entrelaçadas e se
dava à confeção da tatuagem–“preparamo-nos
para o pior e temos a certeza que tudo se passará por uma craveira menor.”
Terminada a função, o tatuador
fotografou-o com o telemóvel, para a prova dos nove. Ele viu o ombro
carregando, em letras góticas e maiúsculas, o seguinte dizer:
“NÃO Á MAIOR OBCESSÃO DO QUE A MIRAGEM DO
TEMPO.”
Enfurecido, insultou o
tatuador: “ó sua besta, não sabe
escrever? Como é possível, dois erros na mesma frase? Digo-lhe já que não será
pago por este trabalho merdoso.” O tatuador ripostou, em demanda dos erros.
Informado sobre a sua existência, rematou a conversa com uma serenidade budista:
“É desde a escola. Nunca sei quando ‘há’ leva
‘h’. Maldito idioma, que mais parece um ninho de armadilhas. Já o outro erro,
tem a certeza? Se se escreve ‘obcecado’, porque não se pode escrever ‘obcessão’?”
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