13.3.18

A cura do arrependimento

Ty Segall and the Freedom Band, “And, Goodnight (Sleeper)”, in https://www.youtube.com/watch?v=2vJ3vk2sCdc    
Não: o arrependimento não cura nada. É a insensata oportunidade para simular um pretérito como se não tivesse tido lugar. Por isso, ela percebeu que tinha de se curar de qualquer laivo de arrependimento que se soerguesse no restolho da melancolia. Sentiu orgulho quando interiorizou, em pensamento afoito, que não mudava nada se recuasse no tempo. Mesmo cuidando de saber que havia tantas cicatrizes, a prova viva das feridas excessivas como selo pungente dos excessos cometidos.
E dessas cicatrizes tinha voz a dor. Parecia que a tinha sentido ontem – e muitas dessas cicatrizes já se esvaíam na penumbra da memória, tanto os anos idos. Podiam-na acusar de ter sido estulta ao decair em tanta loucura sem propósito; que tinha sido louca por ter esvaziado as oportunidades que não deixaram de ter nela apeadeiro. Era o que tinha sido. Na impossibilidade de refazer o pretérito, bolçar arrependimentos é uma perda dupla: nem remedeia o passado, nem serve para aligeirar o embaraço das escolhas que vêm ao caudal do arrependimento.
Por aqui passava a casa da partida. No fundo, era mais uma estação intermédia, onde era preciso mudar de carruagem e redesenhar o destino. Sem nunca perder de vista o que noutros podia ser vergonha, deixando-os numa prostração perpétua, quase como se fossem os párias maiores da sociedade vigente. Ela não queria ser assim. Conhecia alguns fautores de arrependimentos e não gostou do que viu. Gente macilenta, inerte, sem motivos para apreciar a existência, a vontade amordaçada pelo véu gélido do remorso. Limitavam-se a vegetar no dorso do arrependimento – e o arrependimento atuava como abutre sem perder de vista, sempre adejando sobre o horizonte tutor dos arrependidos. O que mais a deixava perplexa era a inutilidade do arrependimento: os casos em que medrava o arrependimento mantinham-se imutáveis no prólogo do pretérito. Era impossível reescrevê-los.
Um dia, quando dava conta desta perplexidade a um amigo instruído, ele contrapôs a sua incredulidade com uma pergunta:
- Não crês que não seja arrependimento; será, um humilde ato de desculpa?
Não demorou a resposta:
- Só se estiveres a falar através de um eufemismo. De que serve o arrependimento a não ser para que o próprio se desculpe, interiormente, dos equívocos de que foi autor? Não vejo utilidade em que alguém peça desculpa a si mesmo. Se houve vítimas pelo caminho, o pedido de desculpa não remedeia nada. Nada! E não tem o privilégio de reescrever nada. Os arrependidos são os maiores hipócritas que conheço. Não há pior traição do que a traição a si mesmo.

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