Ty Segall and the Freedom
Band, “And, Goodnight (Sleeper)”, in https://www.youtube.com/watch?v=2vJ3vk2sCdc
Não: o arrependimento não cura
nada. É a insensata oportunidade para simular um pretérito como se não tivesse
tido lugar. Por isso, ela percebeu que tinha de se curar de qualquer laivo de
arrependimento que se soerguesse no restolho da melancolia. Sentiu orgulho
quando interiorizou, em pensamento afoito, que não mudava nada se recuasse no
tempo. Mesmo cuidando de saber que havia tantas cicatrizes, a prova viva das
feridas excessivas como selo pungente dos excessos cometidos.
E dessas cicatrizes tinha voz a
dor. Parecia que a tinha sentido ontem – e muitas dessas cicatrizes já se esvaíam
na penumbra da memória, tanto os anos idos. Podiam-na acusar de ter sido
estulta ao decair em tanta loucura sem propósito; que tinha sido louca por ter
esvaziado as oportunidades que não deixaram de ter nela apeadeiro. Era o que
tinha sido. Na impossibilidade de refazer o pretérito, bolçar arrependimentos é
uma perda dupla: nem remedeia o passado, nem serve para aligeirar o embaraço
das escolhas que vêm ao caudal do arrependimento.
Por aqui passava a casa da
partida. No fundo, era mais uma estação intermédia, onde era preciso mudar de
carruagem e redesenhar o destino. Sem nunca perder de vista o que noutros podia
ser vergonha, deixando-os numa prostração perpétua, quase como se fossem os párias
maiores da sociedade vigente. Ela não queria ser assim. Conhecia alguns
fautores de arrependimentos e não gostou do que viu. Gente macilenta, inerte,
sem motivos para apreciar a existência, a vontade amordaçada pelo véu gélido do
remorso. Limitavam-se a vegetar no dorso do arrependimento – e o arrependimento
atuava como abutre sem perder de vista, sempre adejando sobre o horizonte tutor
dos arrependidos. O que mais a deixava perplexa era a inutilidade do
arrependimento: os casos em que medrava o arrependimento mantinham-se imutáveis
no prólogo do pretérito. Era impossível reescrevê-los.
Um dia, quando dava conta desta
perplexidade a um amigo instruído, ele contrapôs a sua incredulidade com uma
pergunta:
- Não crês que não
seja arrependimento; será, um humilde ato de desculpa?
Não demorou a resposta:
- Só se estiveres a
falar através de um eufemismo. De que serve o arrependimento a não ser para que
o próprio se desculpe, interiormente, dos equívocos de que foi autor? Não vejo utilidade
em que alguém peça desculpa a si mesmo. Se houve vítimas pelo caminho, o pedido
de desculpa não remedeia nada. Nada! E não tem o privilégio de reescrever nada.
Os arrependidos são os maiores hipócritas que conheço. Não há pior traição do
que a traição a si mesmo.
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