15.3.18

O desastrado de serviço


Parquet Courts, “Wide Awake”, in https://www.youtube.com/watch?v=eZXS8Jpkiac    
Há sempre um desastrado de serviço. A personagem a destempo e no lugar errado. Que devia estar calado, em falando. Que provoca um “ah” de espanto quando passa na leveza da sua imbecilidade. Que, pode-se dizê-lo com toda a propriedade (descontando o lugar-comum), é elefante em loja de porcelanas.
O homem instruído era sensível às causas que engrossam os modismos. E se estava na moda as pessoas educadas e com sensibilidade serem advogados do meio ambiente. Ele não divergia da corrente bem pensante. Era ativista da causa. Não havia manifestação a que faltasse. Contribuía para operações agitadoras contra empresas predadoras, daninhas do ambiente. Por mais do que uma vez teria sido acusado de crime contra a propriedade privada, por danos causados nos edifícios das empresas protestadas, não fosse dar-se o caso de estar imerso na multidão e ser impossível identificá-lo. Escrevia textos apaixonados em que teorizava os aliceces do novo ambientalismo e tecia libelos acusatórios contra quem apadrinhasse entorses ao ambiente. Era admirado.
Um dia, o homem instruído recebeu uma herança e tornou-se um homem abastado. Foi uma herança sem contar. O notário colocou-o ao corrente: um tio afastado (perfilhado por um irmão da sua mãe) emigrou ainda rapaz para a Austrália e por lá fez fortuna. Sem descendência direta, o homem  instruído era o único sobrinho, o único na fila dos herdeiros. Quando soube da quantia da herança, até se engasgou. Era o sinal de que o dinheiro, afinal, também interessa e que ninguém (ele sublinhou, em seus pensamentos, e por várias vezes: “ninguém, mesmo ninguém” – a justificar-se antes do tempo) fica indiferente a um enriquecimento, mesmo que seja súbito e inesperado.
 Quando se viu na posse da fortuna, começou a fazer contas de cabeça. E a esquecer-se dos pergaminhos ambientalistas, da prosa pedagógica escrita, das manifestações em que militou, da geral denúncia do hediondo capitalismo, do amor à natureza no seu estado puro. Era tão fácil um modo de vida transfigurar-se do dia para a noite. Não era capaz de admitir, pois era o beneficiário direto do enunciado que não tinha capacidade para admitir, mas parecia confirmar-se o que os camaradas de ideias afirmavam a propósito do dinheiro: é o corruptor maior, demónio imbatível, alicerce de um hedonismo que nem ideias fortes conseguem combater. O homem instruído aprestava-se a ser a mais recente confirmação do postulado.
O que lhe passou pela cabeça em primeiro lugar quando chegou o momento de começar a gastar o dinheiro herdado? Compraria um Porsche. O mais dispendioso de todos. “Homessa” – interiorizou, em exercício de auto convencimento de que não decaía num delito – “toda a pessoa tem direito às suas extravagâncias. Agora que me calhou em sorte tão abastado pecúlio, quero que o meu primeiro ato, enquanto pessoa endinheirada, seja um carro destes.” Sem contar, era testa-de-ferro dos desastrados, seu súbito e máximo expoente. Assim que os seus camaradas soubessem, seria lapidado em público, alvo de defenestração: não podiam transigir que um dos seus fosse proprietário de um automóvel que era um sinal exterior do capitalismo e que, pior ainda, era tão guloso no consumo de combustível, um inaceitável agente agressor do ambiente.
O homem instruído nem se lembrou disso. Não se lembrou como o Porsche era a capitulação de tudo o que defendera nos últimos vinte anos. Não teve lucidez para alinhavar o raciocínio, que seria sua reação espontânea caso ainda militasse nas fileiras dos camaradas ambientalistas: “maldito dinheiro, que tudo corrompes!

Sem comentários: