The War on Drugs, “Holding
On”, in https://www.youtube.com/watch?v=6-oHBkikDBg
Era mais o aborrecimento da
limpeza: o funcionário camarário idealizava a estratégia para recolher o restolho
que sobrou do toco do centenário plátano entretanto limado. Ele e os camaradas
ficaram furiosos quando o engenheiro novato ordenou que o toco não podia ficar em
riste. Não era isso a que estavam habituados – essas coisas da estética não
eram para aqui chamadas. Ia ser uma trabalheira! Já não chegava estarem
empoleirados nas árvores, como se fossem adeptos de desportos radicais, os
automóveis a circularem pouco cuidadosamente sob os seus hasteados corpos, para
debulharem as ramificações tentaculares da árvore; para cúmulo, ainda tinham de
limar metodicamente o que sobrava do toco até que ficasse ao nível do chão. Nem
queriam pensar, ele e os camaradas, no restolho que ia sobrar e que tinham de
apanhar. Com um pouco de sorte, podia ser que se levantasse um vento, daquelas
nortadas que arrimam com a tarde, para soprar grande parte da serrilha para as
imediações.
Maldita árvore. Só o trabalho que
elas davam. As vivas, carecendo de poda periódica. As senescentes, em cuidados
preparativos e diligente diagnóstico, para não ficarem amputadas de ramagens
que podiam abater-se fragorosamente sobre os transeuntes. Mas as árvores mortas
é que davam mais trabalho. Se ao menos não morressem de pé...
Os funcionários camarários andavam
a descompasso com a moda instituída. As árvores eram sagradas. Para eles, eram
um cabo dos trabalhos. “Este mundo era
perfeito se não houvesse árvores”, proclamou o funcionário camarário mais
velho, enquanto limpava ao fato-macaco os dedos engordurados com o creme do
pastel de nata que caíra sobre os dedos. “Não
era mal pensado. Só dão trabalho. E ninguém lhes liga”, acrescentou outro,
possuído por olheiras anunciadoras de noites mal dormidas. Na mesa ao lado,
enquanto tomava um café depois de ter metido gasolina no Porsche, o ecologista
proscrito estava atónito. Como podia alguém ter ideias destas? Não sabiam um mínimo
de ciência? Não sabiam que as árvores regeneram o ar que respiramos? Não têm o
menor sentido estético, ao ponto de não reconhecerem como as árvores embelezam
uma paisagem?
Os funcionários camarários, por
um momento, remeteram-se ao silêncio. E como sabem bem os silêncios quando as
palavras são como balas disparadas por metralhadoras – pensou o ecologista
proscrito. Não foi por muito tempo. Depois de pespegarem um olhar marialva numa
utente do posto de abastecimento que sob o seu olhar desfilou depois do
pagamento (a mulher era culpada de ter uma linhas curvilíneas), os homens
murmuraram algo, entaramelando com uns sorrisos boçais. Regressaram ao tema: “As árvores são um fardo. Até para o erário público:
vejam só o que se poupava se não houvesse árvores para manter”, logo
seguido da anuência gestual dos cinco funcionários camarários, enquanto
reparavam no Porsche estacionado à frente do recetáculo onde se faziam os
pagamentos noturnos. O mais novo juntou-se à conversa: “Uma noite destas, sonhei que o governo tinha mandado abater as árvores
todas. Por causa de uma praga que se contaminava às pessoas. Não tínhamos mãos
a medir. Foram dias seguidos, fins-de-semana e tudo, a trabalhar desde a
alvorada ao pôr do sol. O país ficou deserto de árvores.” – e todos se
riram com uma alarvidade perturbadora, pelo menos para o ecologista proscrito.
Já não se conseguia conter, o
ecologista proscrito. Sem demora, levantou-se e dirigiu-se à mesa onde estavam
os funcionários camarários, perguntando, na direção daquele que havia descrito
o sonho: “pois era; e depois do abate de
todas as árvores, os senhores trabalhavam em quê?”
A ideia do tatuador parecia
confirmada: as ideias, aparentemente deixadas em banho-maria, não se abandonam
do pé para a mão. O ecologista proscrito podia ser proscrito porque os da sua
causa não perdoaram o desvio consumista e burguês. Continuava a ser ecologista.
Ele não estava tão seguro, porém, do lema cunhado pelo tatuador. Na sua maneira
de ver, toda aquela boçalidade intelectual dos funcionários camarários era
aberrante. Porque qualquer pessoa informada tem um mínimo de sensibilidade
ambiental e percebe as vantagens das árvores (e já nem mencionava a questão estética,
o fator de embelezamento da paisagem). E porque, levando o assunto para a lógica
utilitária, não se podia aceitar que alguém desdenhasse do que lhe dá trabalho.
No seu íntimo, o ecologista
aceitava a qualidade de proscrito. O prazer de condução do Porsche
superiorizava-se às ideias. Talvez a ideia do tatuador não tivesse o vencimento
que se esperava.
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