22.3.18

Sem máscara


The War on Drugs, “Holding On”, in https://www.youtube.com/watch?v=6-oHBkikDBg    
Era mais o aborrecimento da limpeza: o funcionário camarário idealizava a estratégia para recolher o restolho que sobrou do toco do centenário plátano entretanto limado. Ele e os camaradas ficaram furiosos quando o engenheiro novato ordenou que o toco não podia ficar em riste. Não era isso a que estavam habituados – essas coisas da estética não eram para aqui chamadas. Ia ser uma trabalheira! Já não chegava estarem empoleirados nas árvores, como se fossem adeptos de desportos radicais, os automóveis a circularem pouco cuidadosamente sob os seus hasteados corpos, para debulharem as ramificações tentaculares da árvore; para cúmulo, ainda tinham de limar metodicamente o que sobrava do toco até que ficasse ao nível do chão. Nem queriam pensar, ele e os camaradas, no restolho que ia sobrar e que tinham de apanhar. Com um pouco de sorte, podia ser que se levantasse um vento, daquelas nortadas que arrimam com a tarde, para soprar grande parte da serrilha para as imediações.
Maldita árvore. Só o trabalho que elas davam. As vivas, carecendo de poda periódica. As senescentes, em cuidados preparativos e diligente diagnóstico, para não ficarem amputadas de ramagens que podiam abater-se fragorosamente sobre os transeuntes. Mas as árvores mortas é que davam mais trabalho. Se ao menos não morressem de pé...
Os funcionários camarários andavam a descompasso com a moda instituída. As árvores eram sagradas. Para eles, eram um cabo dos trabalhos. “Este mundo era perfeito se não houvesse árvores”, proclamou o funcionário camarário mais velho, enquanto limpava ao fato-macaco os dedos engordurados com o creme do pastel de nata que caíra sobre os dedos. “Não era mal pensado. Só dão trabalho. E ninguém lhes liga”, acrescentou outro, possuído por olheiras anunciadoras de noites mal dormidas. Na mesa ao lado, enquanto tomava um café depois de ter metido gasolina no Porsche, o ecologista proscrito estava atónito. Como podia alguém ter ideias destas? Não sabiam um mínimo de ciência? Não sabiam que as árvores regeneram o ar que respiramos? Não têm o menor sentido estético, ao ponto de não reconhecerem como as árvores embelezam uma paisagem?
Os funcionários camarários, por um momento, remeteram-se ao silêncio. E como sabem bem os silêncios quando as palavras são como balas disparadas por metralhadoras – pensou o ecologista proscrito. Não foi por muito tempo. Depois de pespegarem um olhar marialva numa utente do posto de abastecimento que sob o seu olhar desfilou depois do pagamento (a mulher era culpada de ter uma linhas curvilíneas), os homens murmuraram algo, entaramelando com uns sorrisos boçais. Regressaram ao tema: “As árvores são um fardo. Até para o erário público: vejam só o que se poupava se não houvesse árvores para manter”, logo seguido da anuência gestual dos cinco funcionários camarários, enquanto reparavam no Porsche estacionado à frente do recetáculo onde se faziam os pagamentos noturnos. O mais novo juntou-se à conversa: “Uma noite destas, sonhei que o governo tinha mandado abater as árvores todas. Por causa de uma praga que se contaminava às pessoas. Não tínhamos mãos a medir. Foram dias seguidos, fins-de-semana e tudo, a trabalhar desde a alvorada ao pôr do sol. O país ficou deserto de árvores.” – e todos se riram com uma alarvidade perturbadora, pelo menos para o ecologista proscrito.
Já não se conseguia conter, o ecologista proscrito. Sem demora, levantou-se e dirigiu-se à mesa onde estavam os funcionários camarários, perguntando, na direção daquele que havia descrito o sonho: “pois era; e depois do abate de todas as árvores, os senhores trabalhavam em quê?
A ideia do tatuador parecia confirmada: as ideias, aparentemente deixadas em banho-maria, não se abandonam do pé para a mão. O ecologista proscrito podia ser proscrito porque os da sua causa não perdoaram o desvio consumista e burguês. Continuava a ser ecologista. Ele não estava tão seguro, porém, do lema cunhado pelo tatuador. Na sua maneira de ver, toda aquela boçalidade intelectual dos funcionários camarários era aberrante. Porque qualquer pessoa informada tem um mínimo de sensibilidade ambiental e percebe as vantagens das árvores (e já nem mencionava a questão estética, o fator de embelezamento da paisagem). E porque, levando o assunto para a lógica utilitária, não se podia aceitar que alguém desdenhasse do que lhe dá trabalho.
No seu íntimo, o ecologista aceitava a qualidade de proscrito. O prazer de condução do Porsche superiorizava-se às ideias. Talvez a ideia do tatuador não tivesse o vencimento que se esperava.

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