1.3.18

Casa da partida: uma página em branco


Orelha Negra, “M.I.R.I.A.M”, in https://www.youtube.com/watch?v=0QPWHBmqOAA    
Explicam cientistas que o caos não tem os predicados que o lugar-comum espera do caos; trata-se de um momento heurístico. Tira dos limites da impossibilidade um módico (que seja) rudimento da mudança.
Sabia que não era caso para pânico ao ver-se nas mãos de uma página deserta, branca como a lua cheia, no meio de nada, numa encruzilhada populosa com ideias a precisarem de refundação. Estava na casa da partida. À espera da partida. Notou, com lucidez, que a partida só dependia de si mesmo. Nas mãos, a página em branco era uma dádiva. Possivelmente, outros em circunstâncias idênticas estavam mergulhados no torpor, reféns da inércia, sem saberem o que pensar, sem saberem para onde se mover. Não era o seu caso. Voltara à casa da partida. Não considerava um retrocesso.
Quando a pertença se estreita e já nada pede água e quando a identidade se imobiliza na mesa onde se sopesam suas virtudes, mais vale rejeitar a hipocrisia. Pode parecer que se deita tudo a perder: os azimutes, pelo menos, calibrados na bússola da pertença que agora integra a báscula das rejeições. Por isso, a página em branco. A imperativa página em branco. O maior dos desafios. Era preciso saber o que escrever na página em branco. Estava seguro do seguinte: o que viesse a ser a escrita manual na página em branco, tinha de ser diferente do que se habituara a escrever. Ao menos sabia disso. Ao menos, sabia que não fazia sentido repetir as palavras de outrora, nem reproduzir a gramática de ideias de que se afastara. Repetia, vezes e vezes, sucessivamente: “já era um começo.
Da casa da partida, julgou ter renascido. Não era pedante ao ponto de fingir que o tempo pretérito não tivera cabimento. Exatamente o contrário: o tempo pretérito, em sua metódica recusa, era o emoliente para alinhavar a propedêutica ideia de si por dentro da sua reinvenção. Neste prólogo de um novo eu, ainda era extemporâneo arrematar as palavras que seriam emolduradas na página em branco. Dessa empreitada sabia ser exigente. Carecia de tempo devidamente amadurecido para não escolher as palavras à toa.
Por ora, sentia-se animado por se saber na casa da partida, empunhando a página em branco. Nem tão pouco interessava indagar quem lhe doara a página em branco (que a mesma não aterrou ao acaso na sua pertença). O virar de página é que contava. Desaproveitando, com todo o propósito, a página deixada para trás. A página tornada inútil.
Agora, a paisagem quadrava com a página em branco. Resoluto, atirou-se à página em branco. Começou por escrever “M.I.R.I.A.M”. Não era o nome de uma mulher. Era o acrónimo de “muitas ideias rasuradas inundariam a alma muda”.

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