Mogwai, “I’m Jim Morrison,
I’m Dead”, in https://www.youtube.com/watch?v=5EfuLuN0VXs
O homem instruído, ambientalista
defenestrado pelos da causa, estava furioso. Alguém riscou o automóvel de uma
ponta a outra. Tinha ali reparação dispendiosa. Nem era isso que interessava –
afinal, agora o dinheiro era a rodos. Estava furioso com a vingança – só podia
ser vingança de um dos antigos correligionários, incapazes de perdoarem o
desvio capitalista, a heresia. Enquanto vociferava impropérios audíveis, o
erudito entretanto órfão de referências (que não fossem os hábitos burgueses
que rimavam com prazeres proibidos pela moral católica e pelos da sua causa)
aproximou-se, interessado em perceber o que acontecera.
- É preciso ter azar. Quem terá sido a avantesma que fez semelhante despreparo?
- Soubesse eu, soubesse eu. Ao
menos sabia a quem tinha de ir às trombas.
- Não é caso para menos.
- Um homem não pode ter as suas
extravagâncias. É o que digo, repetidamente, para me convencer que não cometi
nenhum crime ao comprar este carro.
- Ah! A soturna inveja!
- Não é só isso.
- Esclareça-me.
- Até há algum tempo andei
militante da causa ecológica. Era respeitado. Fazia parte do escol dos ideólogos.
Do nada, caiu-me nos braços uma herança avantajada. A primeira compra com o
dinheiro foi este carro. Quando os meus camaradas souberam, fui expulso
sumariamente. Desde então, recebo ameaças anónimas. Chamam-me vendilhão e
outras coisas que o pudor impede de reproduzir. Tenho a certeza que os danos no
carro foram causados por um membro da causa ecológica.
- Sei bem do que fala. Já passei por defenestração idêntica.
- Não me diga! Também lhe
aconteceu ser beneficiário de uma herança com que não contava?
- Oxalá tivesse sido assim. Hoje posso dizê-lo, já que fui defenestrado e
não importa o que os meus camaradas julgam sobre as palavras que digo ou que
escrevo.
- Também foi saneado sem direito
a contrapor a acusação?
- O meu delito foi parecido com o seu, salvaguarda a diferença de poder
de compra, pois ao meu regaço não veio a fortuna de uma herança. Tive desvios
inadmissíveis para os meus camaradas de então. Vícios de consumo, digamos,
burgueses. Quando descobriram, encostaram-me à parede. Fui vilipendiado e saneado,
sem direito a contestação.
- Não andava pelos meios
ambientalistas. Não me lembro de ver o seu rosto por lá...
- Não, não. Era coisa mais dura, mais política, subversiva. Éramos revolucionários
de cepa tradicional, sem as concessões que estão na moda.
- Agora que me passou a febre da
militância, e talvez por ter sido ostracizado, faço perguntas que dantes não
ensaiava – não sei se também lhe acontece. Por exemplo: como pode a militância
subtrair a vontade individual, quando alguém tem um desvio e se presta à
defenestração sem defesa possível?
- Senti isso na pele. As interrogações que começaram a aparecer depois de
terem fechado a porta na cara. Não esperava contemporização, se descobrissem os
meus desvios. Sempre foi um grupo monolítico, intolerante, radical. Mas o que
me causa espécie é eles protestarem contra o sistema, sendo uma das acusações a
intolerância à diferença, e depois serem os mais expeditos algozes da intolerância
no seu seio.
- E, todavia, não fica uma certa
impressão de orfandade, depois de termos sido atirados borda fora?
- Ao início, com grande probabilidade. Assim como assim, foram anos a fio
de lealdade e de ideais-esteio. Não se desliga da carne da noite para o dia. Depois
acaba por passar. Já percebi que sou pária (entre os que outrora foram meus
correligionários) há mais tempo. Acaba por passar esse deserto que soa a
orfandade. E sobejam apenas memórias encardidas, as manipulações dos gurus, a
desfaçatez, a coação da vontade, a entorse psicológica de tudo se legitimar
pelo “bem maior”. Não sobra, sequer, arrependimento.
- O que sobra, nesta altura, é
uma fúria imensa. Era o que mais faltava deixar-me vencer por estes papalvos. Querem
que deixe de andar neste carro. Enganam-se. Nem que me custe o dinheiro que vai
custar repará-lo. As vezes que for preciso. Não me dobram o braço.
- Assino por baixo. Era o que mais faltava serem eles a mandar na nossa
vida.
Os dois homens continuaram a
trocar mágoas e identidades renegadas ao jantar, a convite do dono do Porsche. Seguiram
para um bar nas imediações, numa subcave lúgubre, onde o fumo rastejava junto
ao teto e os clientes tinham uma aparência macilenta. Um ambiente carregado. A
condizer com dois homens que, sem o admitirem, pareciam reféns da urgência em
aplacar a defenestração de que foram vítimas.
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