Aldous Harding, “Imagining
My Man”, in https://www.youtube.com/watch?v=xE-A0cNSLmc
Saíram do bar esconso. Já não
estavam no seu estado normal. Despediram-se friamente – tão friamente como
aconteceria umas horas antes, quando eram desconhecidos e as normas de conduta
não obrigam nem a um discreto aceno de mão. O revolucionário não estava tão
mal. Viu o ecologista a ir em sentido contrário – que, por sinal, era o oposto
lugar onde tinha deixado o Porsche danificado – e teve a certeza que cambaleava
muito mais. (Podia ser uma certeza desfocada: num acesso de lucidez, refreou a
impressão ao admitir que quando se está ébrio, há a necessidade de identificar
alguém que esteja pior.) No parapeito do miradouro, estava um homem. Sozinho,
sentado no parapeito. Ao revolucionário não ocorreu que o homem podia estar a
tentar o suicídio. A embriaguez não caucionava tão elaboradas conclusões.
O homem era novo, no dealbar dos
trinta. Atirava o olhar perdido no longínquo horizonte. Possuído por uma
tremenda melancolia. Acertava as contas com essa melancolia. Às vezes, as veias
em combustão arpoam-se à temporária solidão, a condição imperativa para o
acerto de contas com os pesares que não se desejam duradouros. Não via ninguém
nas suas costas. Não intuía que quem passasse pudesse interpretá-lo como em
pleno ensaio de suicídio. Também não importava. Não importava, nunca importou
por aí além, o pensamento dos outros, o seu julgamento. Muito menos agora, que a
emenda da tristeza estava a ser orquestrada. Se alguém o tentasse deter,
convencido que procurava o suicídio, faria de conta que sim. Só para o corajoso
e altruísta interruptor do suicídio ficar convencido que interrompera um suicídio,
convencido da contundente boa ação do dia.
Sentia-se profundamente triste. Se
tentasse inventariar as causas, provavelmente era capaz de amontoar um bom
punhado. Não perguntassem os detalhes: não conseguia fazer esse inventário,
como se fosse preciso tomar corpo de um elenco dos vários contratempos que
deram corda à melancolia. Era mais fácil responder que eram muitas as razões da
melancolia, mas que não lhe apetecia fazer o rol para não mergulhar nas raízes ainda
mais fundas da melancolia. Os que se incomodam com os contristados militantes,
insurgir-se-iam, protestando contra os habituais tristonhos apenas porque se
cansam de não o serem. Era indiferente: era o que os outros pensam.
Naquele dia, talvez como auge que
o levou ao parapeito do miradouro para expirar tanta fartura de misantropia, a
gota que fizera transbordar o copo foi uma imagem tão frívola, tão irrelevante
para a condição humana e que, todavia, nele causara um profundo efeito sísmico.
Passou numa rua, cortada em metade das faixas de rodagem, porque os
trabalhadores da câmara municipal terminavam o abate de um plátano certamente
centenário. O largo tronco, já de uma madeira esbranquiçada, era a certidão da
decadência irremediável do plátano. “Temos
de acreditar nos peritos”, disse a si mesmo, para se convencer que as árvores,
que morrem de pé, também têm suas exéquias. E, todavia, não conseguiu reprimir
a forte imagem, a devastadora imagem, dos despojos do plátano, os ramos
cerrados espalhados na estrada, sem critério, um mero toco da altura de meia
pessoa, o que sobrava de uma árvore que ostentara a sua sumptuosidade quando
irrompia pelo céu, do tamanho de vários homens juntos uns em cima dos outros. E
os homens da câmara municipal começando a arrumar o material, na indiferença da
árvore abatida, como se já fosse (como era) um resto sem utilidade.
A morte é a maior das
melancolias. Se alguma vez tivessem passado ideias suicidas pela cabeça, esta
imagem da morte era dissuasora do suicídio.
Sem comentários:
Enviar um comentário