5.11.19

A invenção dos invencíveis


Little Dragon, “High”, in https://www.youtube.com/watch?v=-AsLISPht_M
Os armeiros não eram queridos por ninguém. E, todavia, eram cada vez mais solicitados, sempre em segredo. Não eram tempos de armistício. A carestia das armas era o sinal dos tempos. No espelho da demência que fazia o seu caminho, tomando conta de mais gente, as armas eram o argumento derradeiro. Ninguém o admitia. Mas quase todos guardavam em casa, em segredo, um pequeno arsenal. Era o precipício da distopia que já estava nas imediações das almas.
Os dias não deixavam de ser plúmbeos. Por mais que o instituto de meteorologia prometesse um dia soalheiro, as nuvens, as teimosas nuvens, não desabitavam o céu. Dizia-se que o crepúsculo constante prolongava a melancolia. Ninguém sorria. Ninguém confiava no semelhante. Ninguém usava da simpatia e a boçalidade contaminava-se num crescendo que não parecia ter limite: à boçalidade respondia-se com boçalidade em dose maior – e assim sucessivamente. Os poucos estrategas da confiança no futuro tinham batido em retirada, sentindo-se inseguros. 
(Havia notícia de purgas coletivas por bandos de encapuzados que batiam as casas à procura dos hereges deste tempo, os estrategas da confiança no futuro, os que desafiavam o palco plúmbeo que tomou conta do leme dos tempos. Depois de presos, ninguém dava notícias sobre o seu paradeiro.)
Os que vinham de fora eram avisados na fronteira: “aqui não se aceitam boas disposições, palavras de cortesia, gestos de boa educação. Aqui não se aceitam expressões misericordiosas, que são dispensáveis os julgamentos dos forasteiros. Fica desde já notificado, através do carimbo de entrada no passaporte, que será judicialmente perseguido se, por algum meio, procurar derrotar o estado de sombras que foi legalmente decretado.” Os forasteiros, assustados, só queriam despachar com desembaraço a empreitada que os levara a esta terra para dela desertarem. 
Ninguém era capaz de explicar os ventos pútridos que tomaram conta desta terra. Aos olhos dos semelhantes, o paraíso não estava longe. A propaganda assim o encomendava. Nunca houvera mandantes tão prodigiosamente salvíficos. Mas as nuvens não aliviavam o peso que se arqueava sobre os cidadãos. Havia uma dissonância entre a retórica e o que era sentido pelas almas. Ninguém o podia denunciar. Era nesta esquizofrenia que se vivia: emparedados entre o ar irrespirável e terrivelmente pesado e a retórica do éden que estava mesmo a chegar. E a adulteração dos sentidos, quando se insinuava que o ar pesadamente plúmbeo era o selo dos novos tempos em lépida abundância e conforto. 
Muita gente esperava, em metódico silêncio, que os inventores tivessem coragem de dar um passo em frente, rompendo com a inércia. Em todos os lugares, sempre que os lugares foram desfiados por uma encruzilhada, houve uns predestinados que souberam dar resposta à altura. Era isso, ou a decadência sem retrocesso. Contra as profecias autorrealizáveis dos mandantes. Contra a adulteração dos sentidos, de que as próprias vítimas eram primeiras culpadas. 
A corrida às armas, era apenas um pretexto para reparar a incerteza do porvir. E o acidulado sabor dos tempos corrompidos.

Sem comentários: