P. J. Harvey, “Red Right Hand”, in https://www.youtube.com/watch?v=ScC-teZyK-Y
Um mar de limalhas retarda o passo. As pernas afundam-se na densidade. O odor metálico instala uma náusea geral. A condizer, um céu plúmbeo, profundamente plúmbeo. Não há pássaros. Não há gente. No espaço limítrofe que é dado a perceber pelo perímetro do olhar, não há gente. É como se aquele lugar fosse um ground zero e tu não reparaste no perímetro de segurança que proíbe a estadia no local.
És tomado pela aflição: provavelmente, o lugar está contaminado. Chumbo, amianto, as limalhas por todo o lado, amontoadas as escoras da siderurgia – percebes que, outrora, o lugar foi uma siderurgia. Agora é um cenário apocalíptico, ao abandono, sem vivalma por perto (e nem os animais habituados aos ambientes hostis espreitavam a sua presença). Não sabes como foste ali desaguar. Não te lembras. Nem sabes o caminho que te trouxe da cidade (mas, de que cidade?) até à siderurgia em ruínas.
Contemplas a beleza paradoxal das ruínas. O que dantes foi lugar de efervescência, onde centenas de operários contribuam para a prosperidade (mais dos proprietários da fábrica do que a sua – é a tua confabulação, uma reminiscência mal digerida da luta de classes), está agora no cadafalso da decadência. A evocação dos tempos de fausto é demiúrgica. E arbitrária: não sabes da história da fábrica; não sabes por quantos anos irradiou prosperidade; não sabes se os trabalhadores se expunham a doenças sem remédio, ou se acabavam o dia com o conforto oportunista de um ganha-pão. Não sabes por que a fábrica caiu em decadência. Se foi uma crise que tomou conta de toda a economia, ou se as circunstâncias se jogaram contra esta fábrica, apenas. As crises têm este atributo: são material metalúrgico, incomestível, indigerível, que é dado a provar à economia, envenenando-a. E ela, a economia, sem saber o que está a provar.
Não sabes como sair da antiga siderurgia. Enredas-te no labirinto de corredores que se sobrepõem a corredores e a salas amplas, que dão saída para outros corredores e salas amplas. Gostavas de ser cirúrgico para levantar a ponta do véu que cobre a fábrica com um mistério insondável. Nem que fosse preciso um sismógrafo para sentir as dores percutidas pelos restos metalúrgicos despojados, à espera não se sabe do quê. Se ao menos alguém pudesse dar-lhes outro uso, sairias da fábrica mais sossegado (concluis, hipocritamente, só para ficares bem no retrato do imperativo hodierno do ambientalismo).
Não levas essa garantia contigo quando encontras a porta da saída e um caminho reto que te encaminha para o portão onde finda a propriedade. Não sabes o que foste ali fazer. Também não interessa. Há dias assim. Passa o dia inteiro e quase não tens recordação de ele ter passado. Talvez seja da exposição ao material metalúrgico.
Sem comentários:
Enviar um comentário