Teho Teardo & Blixa Bargeld, “What If...?” (live at Rich Mix, London), in https://www.youtube.com/watch?v=p-_l_R6Dcyk
Que ninguém comece com o pé esquerdo: desenganem-se os que de si têm um autorretrato de gente importante. Não são.
A matemática é instrutiva. Se formos a contar o número de seres viventes (uns milhares de milhões) e dividirmos o tempo instantâneo por cada alma, não cabem se não uns milionésimos de segundo a cada um. O cálculo só será válido se partirmos do pressuposto que o tempo instantâneo é de distribuição equitativa, mas é sabido que o pressuposto não pode ser validado. Para provar a falácia da igualdade, sabemos que a alguns cabe uma fatia mais generosa do tempo instantâneo: os famosos, seja qual for a razão da fama, saem do anonimato e essa extração é representada por uma quota-parte mais gorda do tempo instantâneo que é de sua pertença. Todavia, se alguém fizesse um cálculo das pessoas a quem cabe tão generosa quota-parte do tempo instantâneo e depois se dividisse esse número pela totalidade das almas viventes, a proporção seria infinitésima.
Nestes termos, faz sentido que cada um se leve muito a sério, tão a sério como se levam os mais ou menos famosos que têm uma quantidade variável de olhos outros deitados sobre o que fazem e o que dizem? Primeiro: não se insinua uma dualidade de critérios, como se apenas os que reclamam uma quota-parte generosa do tempo instantâneo pudessem de si dizer que devem ser levados a sério, por terem credenciais a preceito, e os restantes, reduzidos à irrelevância do anonimato, não pudessem fazer valer idêntico estalão.
(Até porque a centralidade da fama, a sede de fama que assalta muita gente – entre os que já o são e os que aspiram a sê-lo –, é das maiores irrelevâncias que pode acometer uma alma.)
Aceitando esta dicotomia (famosos e gente anónima), a petição de princípio é seguinte: os que são conhecidos por quase ninguém não deviam ser apoquentados pelo estigma da autoimagem repleta de solenidade, exigindo dos outros um respeito sepulcral a preceito da centralidade do eu. A melhor prova de que não somos levados a sério, nem somos gente importante, é que ao estarmos nas bocas dos outros, os outros a nós se referem como “aquele gajo”, ou “este tipo”. Os nossos nomes não importam. Há, contudo, algo a favor da nossa visibilidade exterior (para os que tanto valor a isso atribuem): há quem fale de nós. Mas não somos tratados pelo nome. Os que connosco se confrontam na aleatoriedade do dia e não nos conhecem, é compreensível que a nós se refiram como “aquele gajo”, ou “este tipo”: não sabem o nosso nome. Os outros, que sabem a correspondência entre o rosto e o nome, deixam-se arrastar para a comodidade de uma fórmula (“aquele gajo”, ou “este tipo”) que não deixa de ressoar a anonimato, provando a irrelevância que somos.
(Ou, em alternativa interpretação, os nomes deixaram de ser importantes.)
E não é mal que assim seja. Quem gostaria de ver a sua privacidade devassada ao andar na rua por ser rosto de visibilidade pública, notando como os olhares alheios sobre si se deitam? Talvez os que vivem assoberbados pela sede de reconhecimento público aceitem que este seja o preço a pagar pelo desiderato. Para mim, não há nada que pague o conforto do anonimato. Que seja considerado pelos outros, os que me conhecem e os que não me conhecem, como “aquele gajo”, ou “este tipo”, é um serviço inestimável que me prestam. O meu nome é património privado.
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