22.11.19

Periferia (short stories #176)


Santigold, “Disparate Youth”, in https://www.youtube.com/watch?v=mIMMZQJ1H6E
          Tenho um visto permanente que dá acesso ao miradouro sobre o estuário, onde o estuário se alarga e se confunde com um mar interior. Vejo os olhos que me veem. Não nos cruzamos, porém. Vemo-nos, apenas. São olhares estranhos que indagam sobre os deslimites de si, o eu que não se conforma com alguns aspetos próprios da espécie. É como no estuário, a água doce do rio funde-se com o mar salgado que nele adentra. Às vezes, a tradução dos idiomas estranhos é dispensável. Um rosto consegue falar por mais que mil palavras que sejam proferidas. É quando se sente uma certa periferia a pertencer aos limites do ser. Não é paradoxal. Os cânones são castradores: o que se contém dentro das fronteiras do ser é o que lhe pertence; o que se situa no seu exterior, nem que seja nas proximidades do que é periférico, pertence aos deslimites. É território estranho, insondável; muitas vezes, adverso, não está confinado às extremas que balizam o eu. Como acontece quando o conforto da alma procura o miradouro sobranceiro ao largo estuário, a periferia protesta um salto no vazio, um salto do eu para fora de si, sem arnês. A periferia é colonizada aos poucos, alargando-se os domínios do ser. Sem temer que a periferia colonize o eu: o ato volitivo que se dedica à sede de conhecimento é incomensurável, não é permeável à tomada de posições pela periferia. A dialética entre o eu e a periferia não é hostil. É construtiva. Porque há periferia a rodos, não se corre o risco de invadir domínios alheios quando o eu demanda a sua periferia. Em caso de dúvida, o critério é a consulta ao registo predial. Ficamos a saber que periferias estão por ocupar. No apetite incontroverso pela desmedida do ser, ao cabo do duro combate perseverante contra o ardil do ensimesmamento, até que a periferia que adjaz seja o território novo, edificante e fecundo, que o eu tem para oferecer. A si mesmo.

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