The Breeders, “Walking With a Killer”, in https://www.youtube.com/watch?v=0xBwXJkxlPI
- As palavras vertidas em papel não se rasuram,
advertias, de atalaia contra possíveis entorses do apregoado. Importunavam-te obnóxias personagens que disfarçam as rugas debaixo de um tratamento dispendioso, ou de também dispendiosos (mas menos) produtos que costuram um retoque aqui e outro ali. Insurgias-te contra os que se escondem do envelhecimento e querem esconder o envelhecimento do olhar usurário. Protestavas:
- Não é gente credora da autenticidade. A vergonha do seu envelhecimento é uma vergonha de si mesmo. Só faltava alguém propor, por entre os arremedos de loucura que são as bainhas do mundo, a higienização dos mais velhos, por – como dizem os juristas – inutilidade superveniente. Só faltava as pessoas perderem prazo de validade, como se alguma vez tivesse sido determinado que as pessoas têm um prazo de validade ditado antes do tempo. Mas a estultícia maior é dos que se escondem da idade. São eles próprios que afixam um prazo de validade. Nunca pensei que houvesse quem desautorize a sua autoestima.
Lá fora, na rua fria do inverno que já deita um olho ao calendário, um casal de septuagenários passeia, vagarosamente, na companhia de um cão.
- As pessoas têm direito – um direito natural – ao ócio, depois de uma vida quase inteira de trabalho,
dizias, ao mesmo tempo que o meu olhar parecia confessar que tinha medo do estado etário do casal. E não fazia sentido, o temor: o casal estava bem conservado e dele emanava uma cumplicidade que o hedonismo e o desejo prévio não permitem entender.
- Tens medo da velhice?
perguntaste, notando o meu incómodo com o casal septuagenário que passeava um cão também idoso. Só deixei o silêncio falar. E o silêncio dizia, através do meu rosto: tenho medo da senescência. Mas não o quero confessar. Amedronta-me a perda de capacidades, das físicas e das mentais. Interrompi o silêncio:
- A velhice faz-me lembrar a decadência. Bem-entendido: não a decadência no seu significado depreciativo, como um lúgubre ancoradouro onde as almas se entregam a um purgatório irremediável. Decadência, como acontecimento natural, que segue a perda de capacidades com o advento da terceira idade. Tenho medo da velhice como tenho medo da morte. Na velhice, vejo o presságio da morte. Ignoro se ainda tenho muitas equações por resolver na vida que trago. Sinto que essas equações são um embaraço ao descomprometimento da velhice. Não sei se os primórdios dos decessos dos da minha idade ajudarão a mudar esta impressão, para que eu saiba que não há drama na finitude da vida. Mas não tenciono esconder-me do envelhecimento. Não irei para gabinetes de estética ou para camas de cirurgia plástica para disfarçar os sinais do envelhecimento. Não serei protótipo de um homem a destempo, como se ainda fosse fácil algumas proezas que dantes eram quase banais. Às vezes, quando olho para os velhos sinto-me dividido. A imagem de ternura vem no dorso de alguma comiseração – eu sei, não o devia sentir – que é, talvez, autocomiseração antecipada. É isso que me magoa na velhice dos outros: o pressentimento da minha própria decadência.
O casal de velhos do outro lado do passeio deteve-se à frente do canal, contemplando a luz desmaiada do entardecer. Ele passou a mão suavemente pelos seus ombros, agasalhando-a com ternura. Ela respondeu com um beijo arrancado à sua boca, o prefácio de uma demorada fusão dos olhares recíprocos. Lá dentro, no café, onde ambos eram testemunhas do enlevo dos velhos, um consolo apalavrado:
- Vês? Não deves temer o envelhecimento.
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