26.11.19

Estreito


FKA Twigs, “Cellophane” (live at Later...With Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=r7cd9XpCAIc
Eis a varanda de que se falava. Os fiordes cavam fundo o mar constrangido e do estreito avista-se o mar depois, que se abre como se os braços oferecessem muita generosidade. O mar exala um odor intenso, este mar que, por estar constrangido, metido entre os fiordes como se fossem um colete-de-forças, se amansa com o beneplácito da inclinada massa de terra que se eleva a partir do lugar onde é bordejada pelo mar. 
- Temos os pés no navio que nos oferece a descoberta. O estreito é o passaporte. Parece que os fiordes crescem depois do estreito. 
- Faz lembrar, com as devidas diferenças, Vila Velha do Rodão, as Portas do Tejo.
- Com as devidas diferenças...
E assim ficaram, boquiabertos, o olhar inclinado à altura da inclinada massa de terra que irrompe do mar, como se viesse do nada e ao tudo aspirasse. De tanta inclinação do olhar, já doía o avesso do pescoço. O estreito parece ter sido feito à medida do navio. Quase é possível tocar nas paredes da montanha que descem do fiorde em direção ao mar calmo. 
(Também se podia dizer, em formulações alternativas: que o navio é que foi feito à medida do estreito; e que as paredes da montanha se elevam a partir das profundezas do mar, ali consideráveis, se não o navio ficava retido nos baixios.)
O estreito consagra a proximidade com a terra que cinge o modesto braço de mar que teve a ousadia de romper as rochas. O comandante anuncia, num inglês perfeito, que este é o lugar onde os passageiros estão mais próximos da massa de terra que compõe o fiorde. O navio sossega, agora que se avista o fim do estreito. Sentia-se alguma inquietação do navio por estar tão próximo das paredes do fiorde. Sentia-se tensão como parte da banda sonora de que faziam parte o rumorejo dos motores do navio e o silêncio dos passageiros, em contemplação da singularidade da paisagem. O comandante entoa, vagarosamente, o nome do estreito. Não se percebe sequer a primeira letra do nome que dá nome ao estreito. Não é preciso. Retém-se a imagem do estreito, que fica guardado na memória como um estreito que tem um nome impronunciável no idioma local.
- Temos de voltar a passar pelo estreito?
- Não sei. A lógica manda dizer que sim. Não creio que haja outra passagem para o mar aberto de onde viemos.
- Tiramos fotografias depois? Não aprecio esta luminosidade.
- E se não regressarmos por este caminho?
- Tens razão. Vou tirar umas fotografias enquanto é tempo.
Horas depois, já anoitecera, o navio fez-se ao cais numa pequena localidade de pescadores. Desembarcaram. Era o fim do percurso tendo o mar como leito. O resto, seria diferente, por terra. Não voltariam ao estreito.
(A não ser que repetissem a viagem, o que não era seu critério.)

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