7.11.19

Margem de erro


DIIV, “Skin Game”, in https://www.youtube.com/watch?v=YU-tg374yoA
O castelo acabado: uma fértil safra contra os embaraços que não têm vez marcada no calendário. Se houver alguém que porfiar na perfeição, que seja denunciado e levado a julgamento: essa ambição (dir-se-ia, em idioma antropológico: essa heresia) arranca da carne das pessoas o seu ser genuíno, torna-as uma adulteração impossível.
Prefira-se, antes, a margem de erro. Em vez do abismo marcado a ferros incandescentes, o lúgubre estado da perfeição inacessível, prefira-se a margem de erro. Ninguém sabe do estado inteiro das coisas todas que importa compulsar; ninguém tem as coordenadas completas do palco, do imenso palco, onde têm articulação os episódios de que é feita uma vida. Com a margem de erro, deixamos de nós a veste humana, a humilde consideração da imperfeição. Essa será a maior honra que podemos prestar às proezas que a humanidade foi capaz de selar desde tempos imemoriais. É o ato de glorificação da grandeza de cada um.
*
  Réplica: e, todavia, conferir o poder heurístico da margem de erro é o reverso da perfeição. É a possibilidade deixada em aberto pela inalcançável perfeição. Não deixa de ser uma outra modalidade de perfeição; dir-se-ia: o rosto humano da perfeição, descontada a perfeição impossível que se sublima na perfeição que sobra ao subtrair a margem de erro aos atos cometidos. As pessoas não deviam precisar de margem de erro para disfarçarem o arrependimento pela impossível perfeição. Deviam assumir-se como são, pessoas em sentido inteiro. Em sentido inteiro: pessoas banhadas por águas impuras, tomando decisões que divergem do pretendido, que falam o que não tencionam falar, que se enredam em mentiras, umas voluntárias e outras apenas o registo de omissões, mas nem assim pessoas diminuídas. 
O cuidado da humanidade será menos exigente se forem banidos os laivos de perfeição, direta ou com a intermediação da margem de erro, a açambarcar a vontade. Tudo devia ser apenas volitivo. Sem a espada severa da contabilidade que se regista no final ou a meio do andamento. Sem a pulsão indigente da falsa ilusão dos planos desenhados ao milímetro. Deviam subtrair as ferramentas desta pérfida engenharia que adultera as almas – a regra e o esquadro, o transferidor, o fio de prumo, toda uma cofragem soez. 
Deviam deixar as pessoas ser como elas são. Perfeitamente imperfeitas, se é que a metáfora paradoxal e esquizofrénica não constitui ultraje para alguém. 
(Em constituindo, sugere-se o ensimesmar que medre o convencimento de que nada, ou pouco mais do que isso, merece as algemas da intensa seriedade.)

Sem comentários: