27.11.19

Pergunta de retórica (ou algo mais do que isso): o que separa da extrema-esquerda os meus amigos de direita que se insurgiam contra a extrema-esquerda e agora se enamoraram pela extrema-direita?


DIIV, “Doused” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=_-3JsOU27Tg
Não gosto deste tempo político. Deste tempo social. Ferve um caldo fétido de radicalização que não é bom presságio. Sabemos, da História, o que acontece quando ferve o caldeirão do radicalismo. Alguns, cada vez mais numerosos, não saberão, pois não se importam com as lições passadas sobre as consequências da radicalização; ou acreditam, ingenuamente, que agora é diferente e a radicalização (de que são intérpretes) é benigna.
Fico ainda menos sossegado quando vejo a deriva radical de uns quantos como (no entender deles) justificada reação à radicalização que se lhes opõe desde a trincheira contrária. À direita, parecia estabelecida a insignificância de movimentos radicais desde o fim da segunda guerra mundial. Os últimos anos testemunharam o recrudescimento de radicais de direita, numa amálgama (populistas, alt-right, nacionalistas, conservadores extremados, tradicionalistas saudosistas, religiosos convertidos à política e políticos contaminados pela religião fanatizada, e extrema-direita pura) que serve de pretexto para que certos sectores que medram num radicalismo oposto protestem um estatuto de “normalização”, consentâneo com o desfazer da imagem de radicalismo que lhes estava colada à pele. À esquerda, os radicais foram passando com alguma condescendência embebida na sociedade, sem o mesmo julgamento a que foram sujeitos os radicais de direita (nazis e fascistas) após o fim da segunda guerra mundial. Agora, que o medo tem o rosto do radicalismo de extrema-direita, a extrema-esquerda quer que reconheçam o seu rosto seráfico.
Tenho amigos que me habituei a ver situados entre a direita moderada e o centro-direita. Nos últimos tempos, em coincidência com a deriva radical à direita, tenho visto alguns desses amigos entusiasmados com movimentos que se afastam da direita moderada e do seu património genético. Vejo-os de braço dado com personagens pouco recomendáveis, com eles farejando políticas que atropelam aquele código genético. Ainda não percebi se esses meus amigos saíram agora do armário, finalmente representados por movimentos de direita radical ou de extrema-direita (quando antes não existiam ou eram irrelevantes), ou se também decaíram na lógica de radicalização que destila dos poros destes movimentos. 
Lembro-me que alguns desses meus amigos se abespinhavam com o radicalismo de partidos e personagens situados na extrema-esquerda. Percebo-os: também me abespinha esse radicalismo e dele tenho medo. O que me diferencia desses meus amigos, é que tanto me intimida o radicalismo à esquerda como o radicalismo à direita. O que me distingue desses amigos, é que estendi o cordão sanitário da extrema-esquerda à amálgama de radicalismos que se entrincheirou à direita. Consigo discernir as diferenças de conteúdo entre os dois géneros de radicalismos. Para mim, contudo, é mais importante ter a lucidez de reconhecer que entre eles não há diferenças metodológicas.
O que me deixa inquieto, é evocar esses amigos no pretérito, vê-los furiosos com a ostensibilidade do radicalismo alojado na extrema-esquerda, vê-los vaticinar sobre o mal que sobre nós se abateria caso uma destas extremas-esquerdas (ou a sua coligação) nos governasse, o mal que daí resultaria para as liberdades e para os valores com que nos habituamos a conviver como esteios de um regime político todavia repleto de imperfeições. Agora, vejo-os a perfilhar ideias que se reconduzem a métodos que não se distinguem do que dantes abjuravam. Um dia destes, um desses amigos perguntava-me, em jeito de pergunta de retórica: “se pode haver gente de extrema-esquerda, por que não posso defender estas ideias que tu dizes serem de extrema-direita?” Respondi que não vejo diferença entre um radical de direita e um radical de esquerda – o que serviu para que esse amigo, com alguma ira de permeio, me tivesse atirado para as imediações da extrema-esquerda. 
Estas palavras não são um ultimato aos meus amigos que descaíram para o radicalismo de direita. Eles têm direito ao seu pensamento, às opções e às opiniões que lhe sejam consequentes. São da mesma estirpe dos radicais de extrema-esquerda. Os tais que, há uns anos, eram por eles vilipendiados. Todos temos o direito de mudar de pensamento, de opinião e de posição. Ou de permitir que esse pensamento, opinião e posição venham à superfície depois de anos de encobrimento. Ainda estou para perceber qual das hipóteses é o quadro que tenho aberto diante do olhar. 

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