19.11.19

Sobre a praia (short stories #175)


Dead Can Dance, “Summoning of the Muse”, in https://www.youtube.com/watch?v=5J8mvTWceO8
          Não sei dos segredos. Não sei dos sortilégios invocados pelos roteiros da pureza. Conto com os dedos simples para afastar as folhas húmidas que possam travar o passo. Não está longe, a praia. Pressinto o mar no seu murmúrio, as estrofes que convidam as mãos a verter as lágrimas na espuma cindida do resto da maré, a espuma despojada na areia. Não hão de ser as lágrimas a bordejar o mar. Espero que se diluam na maré maior. Espero que, ao chegar, o mar traga a mim o sangue de que preciso. É noite. Sei que estou sobre a praia. A configuração das sombras deixa antever as formas sublimes da praia, a fusão entre a terra e o mar; a fusão entre o corpo e a alma, ofício que nem sempre se configura acessível. Estou sobre a praia, à espera de algo que se assemelhe a uma reconstrução. Pois a praia, como residência do mar, presta-se ao apartar das angústias: elas dissolvem-se no salitre que esvoaça, com o vento intransigente como companhia. Na praia apetece demorar. Não está ninguém, a não ser a noite. Apetece demorar. As modestas luzes da iluminação pública emprestam uma luminosidade sóbria que se deita sobre a praia. As ondas rompem o silêncio da noite medular. São a voz do mar que se quer ouvir. Talvez me contem os segredos, que não sei quais são. Não estou seguro de que saibam dos meus, ou que os meus tenham categoria para uma entidade faustosa como o mar. Pudesse a praia ser notário dos segredos meus, para que eu deles pudesse ter vencimento – para que eu deles pudesse ter inventário, ao menos. Estou sobre a praia, os ossos enregelados pelo vento intransigente que uiva como se houvesse um grito lancinante a entoar no silêncio da noite. Como se a noite, ou o mar, pretendessem um acerto de contas. Sobre a praia, queria verter os segredos, mas não me lembrava deles.

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