Acid Arab, “Gul l’Abi”, in https://www.youtube.com/watch?v=0e0txlm7KUo
Mote: “Um benfeitor anónimo anda pelos bairros pobres da periferia de Istanbul (Turquia) a pagar as contas em atraso nas mercearias e a deixar envelopes com dinheiro nas portas.” In Público, 19.11.19, p. 25.
(Uma reconstituição, ficcionada)
A mulher herdou uma fortuna de seu pai, um magnata da extração de minérios. A mulher sempre teve sensibilidade social e interessava-se pelos desfavorecidos. A miséria, tinha-a como uma injustiça que era prova da ausência de deus. O pai, capitalista incorrigível, era o epítome do egoísmo e da avareza.
(Como fica bem contar numa narrativa com timbres morais; como cabe sempre bem na narrativa, apoucando o capitalista, necessariamente adicionando o adjetivo a preceito: “porco”.)
A filha não falava com o pai há muitos anos. Foi ela que o rejeitou, encruada com o descoração do pai. O pai sempre manteve as obrigações de paternidade. Nunca faltou nada à filha, por mais que ela o desdenhasse e à sua abastança. Estudou e fez algum conforto material a expensas do pai. Para o provocar, alistou-se em movimentos rebeldes que protestavam contra o regime político. Ela sabia que o pai bebia na mão dos mandantes. Ele próprio era um reconhecido membro da oligarquia dos negócios que amesendava com o poder político.
No dia do funeral do pai, a filha estava em viagem de voluntariado num país africano. Não verteu uma lágrima. Não antecipou o regresso a Istanbul. Faltou ao funeral. Entre a família e o séquito, ninguém perdoou o agravo, a ausência na homenagem final de tão admirável homem, a flagrante desconsideração do pai. Esse não era o retrato que tinha do seu pai. Teve de enfrentar impugnações ao produto hereditário que, por lei, lhe era destinado. Ao início, considerou a hipótese de recusar a herança. Teria de ser coerente com os seus princípios. Aceitar a herança podia ser entendido como um ato de oportunismo e como indireta e discreta homenagem ao pai. Não havia nada naquele homem – frio, avarento, egoísta, insensível – que pudesse homenagear. Para piorar o seu estado de alma, receber a fortuna do pai entrava em contradição com a indiferença pelos valores materiais por que se pautava.
Decidiu aceitar a herança. Não quis saber das minudências do império empresarial. Nomeou a primeira pessoa que se atravessou no caminho, e que era parte constante da obediente coorte do pai, para gerir esse império. A fortuna com expressão em bens tangíveis passou para a sua titularidade. Tinha um plano. A fortuna serviria para a redistribuição que o pai sempre recusara. Queria-o fazer anonimamente. Não queria ficar nos anais como uma heroína que atuou em favor dos pobres. Não queria esse reconhecimento público, nem comendas, nem o agradecimento das pessoas ajudadas e das outras sensibilizadas com o gesto. Só queria ajudar pessoas. Melhorar as suas vidas.
Passou a dormir de dia e a laborar durante a noite. Sozinha. Não quis confiar em ninguém, não fosse alguém descair-se e revelar a sua identidade como a benemérita que começou a semear sorrisos nos bairros pobres da periferia de Istanbul. Andava pelos bairros, ao entardecer, para inventariar as pessoas importunadas por dificuldades. Mais tarde, quando a noite tinha a companhia do silêncio, fazia uma ronda pelas moradas das pessoas que tinha inventariado horas antes. Deixava nas caixas de correio envelopes com fartas maquias. No dia seguinte, antes do encerramento do expediente, visitava bancos, empresas de água, gás e eletricidade, mercearias, escolas, livrarias e farmácias, e pagava, em nome dos devedores, as suas dívidas.
Agora já podia morrer em paz, aliviada por ter pago em nome do pai as dívidas por que ele nunca quis ser responsável. Essa era a maior homenagem que lhe podia prestar. Sem ele saber. Talvez, sem ele dar conta de ser merecedor.
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