13.11.19

Arrumação

Massive Attack, “Black Milk”, in https://www.youtube.com/watch?v=NdpfrKLH-iA
A desordem como única ordem visível, as coisas sem lugar, os lugares com coisas amontoadas, gavetas desarrumadas, uma mistura de coisas irreconciliáveis ganhando lugar num lugar que não devia ser seu, peças de roupa descombinadas, calendários perdidos, a chave mestra do caos, o pó denso que se acama nos móveis, os mantimentos que ora falham ora sobreabundam na dispensa e no frigorífico, a louça por lavar, empilhada, roupas que deviam visitar a lavandaria, o pensamento desalinhado, sem rédeas, horas sem hora – instalação porventura improdutiva de uma existência desassisada.
A arrumação soergue-se como necessidade. Pausa. Para interiorizar. 
Arrumação. Sentido e ordem – e serão necessários? Perguntava se queria ser refém de regras herméticas, regras que, apesar de estabelecidas por si, eram regras e, como regras, de observação imperativa. Lembrava-se de tempos de antanho, quando a irreverência era modo de vida, uma militância, e provocava as regras com desdém. Continuaria a ser ele próprio se, agora, umas décadas vividas, dele fruíssem as regras que apresenta como hipóteses para congeminar a arrumação que determinou necessária? Talvez, se fosse para dar ordem a um sitiar ao mesmo tempo heurístico, se desconfiasse que pôr a vida em ordem seria heurístico.
Não estava convencido. Não sabia se precisava de uma arrumação que levasse tudo a eito. Uma reminiscência vaga assombrava os sonhos. Só conseguia distinguir uns vultos. Ele era um dos vultos. E desse vulto sobrava uma aura de meticulosidade irrepreensível, hermeticamente selada contra qualquer fuga. Os sonhos evocavam uma sua personificação anterior – de que, era claro, se tinha esquecido – embebida nas possíveis virtudes da ordem, metodicamente organizada, quase doentiamente organizada. Não se lembrava de mais nada. Tinha receio que os sonhos desalfandegassem essas recordações, que asfixiavam a personificação anterior do, todavia, mesmo eu.
Não precisava de mais nada. Se o eu de agora não tinha lembranças da anterior personificação, é porque não havia nada que merecesse ser recordado. A arrumação que o caos constante parecia augurar era um logro. A probabilidade de ser um qualquer esquivo fantasma a reavivar essa não recordável personificação do, todavia, mesmo eu, escondia o propósito da arrumação que adejava como imperativo nos dias em que a desarrumação o sobressaltava. 
A arrumação impetrada era transfiguração de uma desarrumação ainda pior. Tinha de imprecar os ventos que sopravam a favor da arrumação, tirando-lhe a máscara para ficar à mostra o que era: desarrumação que tinha a sua desarrumação como alvo.

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