6.11.19

Beija-flor


Medicine, “Time Baby III”, in https://www.youtube.com/watch?v=DorLHLxvrFM
“Não caio”, alegava contra as minhas intenções, depois de uma tarde forasteira que parecia não levar a nenhum desaguar. “Não caio e, todavia, sinto que o vento traduz a minha fragilidade.” Tu ouvias. Estranhavas algumas dessas palavras. Soavam-te a um estéril manancial errante, palavras sincopadas por outras que se atravessavam a meio do caminho. 
“Não caio e, todavia, sinto que o vento traduz a minha fragilidade. É como se amanhã fosse um precipício”, dizia, com a mesma gravidade de quem não sente o que fala. Era como se o rosto se estremunhasse pelo entardecer, um sono por estabelecer a horas impróprias. A menos que dissessem: “não há horas impróprias. Para nada.” Não ouvi tais palavras, por mais que procurasse nas imediações – não havia vivalma. Podia, ao menos, ser uma voz sem rosto a murmurá-lo ao ouvido, sob a custódia de um ângulo morto em que o olhar não tivesse serventia. Mas era só um silêncio que se impunha, contra os tarefeiros das aleivosias que estão sempre de atalaia. Não me importava. Não me importunavam, esses tarefeiros. 
Havia uma ardósia no café que convidada à deposição dos pensamentos de quem por ali estivesse. Preferi guardá-los para o bloco de notas. Não queria amesendar na lógica comunitária que se contagia, agora que os meios convidam a sermos exportadores de voyeurismo – que é como quem diz, a projetarmos o voyeurismo de nós mesmos para o exterior, partindo do pressuposto que há voyeurs prolixos que não recusam um olhar de nesga ao que não pertence à sua vida. 
“Não caio e, todavia, sinto que o vento traduz a minha fragilidade. É como se ontem fosse um precipício. E agora pressinto que o luar congemina a minha sagração.” Não sabia de onde proviera este oráculo. As rodas de uma fábrica sem sítio não deixavam de percutir no mais fundo tutano. Podia ser o pressentimento. Ou o coalhar de um hábito sem marca de água. Pudesse confirmá-lo, ao menos. E dizer ao mundo inteiro, com direito a anúncio pago em jornal, que preferia ser beija-flor porque eras, em cuidado do meu amor, a flor que não me cansava de beijar. Até que as palavras avulsas, errantes, fizessem todas sentido, porque embebidas na água perfumada, quimérica, do amor que o beija-flor tem como beijo.

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