17.12.19

A personagem acordou maldisposto e desatou a contar impropérios (advertência: não é um exercício autobiográfico)


Allen Halloween, “Na Porta do Bar”, in https://www.youtube.com/watch?v=iLjsGbG8A7Q
A noite tirada do tempestuoso açambarcar do sono: a cabeça pesava mais do que o corpo demais e o pensamento custava a obedecer à ignição. O pensamento doía (ou era a cabeça, não chegou a discernir). Apetecia deixar o corpo na cama – afinal, estava lá fora um céu plúmbeo e a chuva fazia-se notar como se fosse preciso que as pessoas dessem pela sua existência. Mas havia horários a cumprir. E o corpo teimava mais do que o pensamento, ordenando ao pensamento (quando devia a ordem corresponder ao sentido inverso) para se mexer em rima com o dia que começava a ser tarde.
Era escusado dizer que o dia estava entornado desde o começo. Escusado seria dizer, as coisas começaram a ter um tapete que não era a preceito: verteu a chávena de café com leite nas calças que seriam as do dia; tinha-se esquecido do lixo e o vento noturno considerou a hipótese de o espalhar pelo jardim, semeando uma paleta de caos; logo à saída de casa estava um acidente de viação e as filas de trânsito compuseram-se mais cedo, como se mais gente tivesse saído mais cedo e tudo fosse mais cedo para todos chegarem mais tarde; antes do almoço, soube que o projeto que apresentara às chefias não foi considerado, sem ser transmitida fundamentação da recusa (um seco “recusado”, com uma assinatura ilegível, mandatava a decisão superior); o almoço não caiu bem e a meio da tarde, sentindo-se com náuseas, teve de vomitar, sujando o segundo par de calças do dia; antes de sair do trabalho, soube que um amigo de infância morrera (mas este era o pior dia para resgatar as memórias de infância).
O dia só conheceu a sua carantonha irascível. O silêncio dos colegas de trabalho quando ele estava presente era sintomático. Durante o dia, as poucas vezes que falou foi para: dar uma reprimenda ao chefe, deixando-o atónito; sussurrar repetidos impropérios, ou porque uma tarefa não combinava com o esperado, ou porque se irritara com uma notícia, ou porque ouviu dizer que a estagiária deleitosa foi jantar com um sujeito imprestável que tem escritório de advogado no terceiro andar, ou porque recebeu uma mensagem no telemóvel que o deixou tão iracundo que um termómetro subiria ao rubro se fosse pousado nas suas imediações. Pelo dia fora, só comentários secos, desagradáveis, às vezes descorteses, tiveram o condão de as pessoas deixarem de lhe dirigir a palavra. “Não faz mal”, interiorizou, enquanto olhava com desdém para os que partilhavam aquele espaço.
Perdeu a conta dos impropérios e dos esgares de desprazer e das juras de vingança que, estivesse em dia de perspicuidade, soavam a sordidez. Até ele foi vítima dos doestos proferidos ou simplesmente pensados: era só as coisas não quadrarem com o pretendido e autoinfligia-se penosamente: “és um merdas, não serves para nada.” Ou “bonito! Agora só te falta saltar da ponte para compor o ramalhete.” Ou, ainda, “por que esperas para te maldizer, que este dia de inépcia não é tão diferente dos demais?”. Ou “não prestas, és um inútil”, proclamado repetidamente. Sabia-o: não era justo exteriorizar toda a fúria, se ele era a pior pessoa de todas. 
Aguardou, impacientemente, pela noite que se seguia. Recusou as preces que teriam sido notificadas como sugestão do pai. O melhor era afogar a cara no uísque, para ver se o resto era esquecimento.

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