Moullinex & Xinobi, “Azul”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZK-Y2g14Fng
É só mais um dia. Um dia, o que passou. Olhas para as horas precedentes e parece que foste passageiro de uma vela hasteada contra o vento vadio que vinha do mar. Dirias que pouco lembras do dia, mas trazes o odor da maresia colado ao corpo. Se escrevesses um diário, ou se tivesses por hábito inventariar os factos que se destacam da monotonia restante, dirias que foi um dia puído. Não ficaria anotado a cor viva nas faldas da memória.
Nem sentes cansaço, ou sono, como é habitual a esta hora já avançada do dia, quando o dia entra na senescência e, por mérito da noite, se enlaça com o dia seguinte, nascente na mesma noite soturna que serve de túmulo ao dia que se apresta a ter demarcação num estuário ao acaso. Não te apetece recolher aos aposentos, como é habitual. Não darás engodo à rotina com que gastas as derradeiras horas do dia a convocar o sono. Apetece-te ser observador dos espécimes que vagueiam na noite. Os boémios e os não boémios, para notares a diferença entre os que tiram partido da noite para dela fazerem a barriga da vida e os outros, mergulhados na noite por necessidade. Apetece-te ser observador da falência do dia.
Sais a horas impróprias – é o teu relógio biológico, interno, a protestar. Não sabes por onde vais. Vais, apenas. Seguindo o chamamento da noite, em seu feérico exemplar atribuído aos marinheiros destas marés. Sempre soubeste que não eram marés ao teu jeito. Não desistes da encomenda. É só mais um dia. Não sabes se foi um dia mau, ou um dia bom. Olhas para o relógio: o dia decai nos seus últimos suspiros. Ficas à espera do seu final, quieto, à entrada de uma estação do metro na companhia de um segurança, que balbucia linguagem codificada (e castrense) ao intercomunicador.
(Só conseguiste perceber aquelas palavras, talvez de alívio – por serem sinónimo de fim do expediente –, em que o segurança comunica que só faltam três minutos para fechar o acesso à estação.)
Já é um minuto depois da meia-noite. O dia foi deposto e, em seu lugar, fala um dia acabado de nascer. Ao dia sucede um dia. Não notas diferença. A noite é a mesma, as pessoas que voluteiam nas ruas são as mesmas, com os mesmos rostos e a continuação das mesmas frases. Se ao menos se confirmassem as convenções e, com a meia noite a mostrar-se nos relógios, o dia vindouro rasgasse do calendário a folha correspondente ao dia sepultado, talvez as coisas fossem diferentes. Talvez não repetisses, vezes sem conta, “é só mais um dia. Um dia com as dores próprias de um dia repetível.” O que querias é que os dias não tivessem um rosto visível. Que fossem, irrepetíveis.
Já são três horas e dezasseis minutos do dia novo. Soa demasiado epistolar o anúncio da hora desse modo. Admites: sempre foste muito solene. A começar contigo. “Oxalá não fossem as fraturas do pretérito as faturas que levas a peito” – resmungaste, audivelmente, sabendo que o responso saíra de ti para voltar à procedência.
Estavas quase em casa, sem ter sido de propósito. Entraste no prédio e o porteiro acordou, estremunhado, de um sono imprevisto. Que incómodo! A tua chegada tardia assustou o porteiro. Passaste a mão pelo ombro do porteiro e disseste: “boa noite, senhor Adriano”. Desconfiaste que a noite do senhor Adriano, em princípio uma noite em branco, ia ser melhor do que a tua.
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