12.12.19

“Fique com o troco” (short stories #179)


Caribou, “Home”, in https://www.youtube.com/watch?v=LX30jRKcmbw
          “Quais são os fumos da infâmia, as histórias soezes que tatuam os seus intérpretes?” Se havia procedimento que desprezava, era o das lições de moral, necessariamente ungidas de superioridade. Dele sabia ser um exercício de estultícia, a incapacidade para a autorrepresentação e a perceção das coisas. Ele há quem seja perito em julgamentos das almas, criteriosamente ocultando o julgamento de si mesmo. E são os que mais depressa correm à escadaria onde se atropelam os que de si mesmos se julgam poços infindáveis de virtudes; ou que, não se reconhecendo como tal, depressa arregimentam os outros para juízos sumários que os arrastam para águas pouco recomendáveis, sendo essa a cosmética a jeito para ocultar as suas fragilidades. De vez em quando, a interrogação, ouvida num desinteressante diálogo numa esplanada desde a mesa do lado, instala a corrosão no pensamento: “quais são os fumos da infâmia, as histórias soezes que tatuam os seus intérpretes?” Não lhe podia ocorrer interrogação mais imprudente. Não era desprezível perguntar, em jeito de pergunta-resposta à interrogação da esplanada, se a altivez do julgamento não é a confissão de culpa de outras culpas que a vergonha (ou a falta de noção) impede de materializar. Se ao menos houvesse um acesso de humildade e a interiorização das falhas impedisse as pessoas de assinarem sentenças, e ainda por cima categóricas, sobre os outros; se ao menos houvesse um módico de respeito interior, para dele medrar o convencimento de que ninguém pode ser juiz dos outros. Mas é tudo ao contrário. Quando o olhar se exterioriza como ardil para disfarçar as fragilidades próprias, ninguém é narcisista. Os demónios assaltam os outros e os olhares vertem-se sobre eles. O juízo que assim se legitima é a pueril certificação da perfeição. Se forem somadas todas estas perfeições irredutíveis, sobra um otimismo antropológico capaz de fazer corar os mais otimistas. Ao menos isso. Que aos asnos que de si têm este retrato à prova de impurezas, só se pode dizer: “fique com o troco”.

Sem comentários: