19.12.19

Legado


Eels, “I Need Some Sleep”, in https://www.youtube.com/watch?v=Fy8hK3blQOQ
O passado sobposto ao futuro – ou o futuro que se agarra às raízes do passado. Uma paisagem que contraria a desolação, dizem. Gente havida que deixa fundações imorredoiras, contagiando os que lhes sucedem. Um legado. 
Evocado um legado, toda uma constelação é deixada em favor dos futuros. Desse módico, do somatório de todos os módicos originários de diferentes pessoas, diz-se que o mundo avança. Diz-se que os futuros não podem esquecer os pretéritos, pois deram-lhes, em inestimável legado, parte do chão em que repousam, parte do chão que os futuros deixarão em legado aos futuros depois deles. O devir é um labirinto de legados que o amarra ao transato.
Fica a impressão que os legatários fazem do legado uma missão. Não se antecipa a hipótese de os que são cuidados como fautores de um legado não tenham tido o legado em vista quando fizeram o que fizeram para depois ser considerado um legado. Ou: quando alguém se distingue e é mais tarde reconhecido como um importante dignitário para memória futura, não ocorre aos zeladores do legado que o seu sujeito não tenha cuidado da hipótese de deixar algo em legado. Não se coloque de parte a hipótese de haver quem levante a ponta do véu sobre o que, ainda antes do tempo (isto é, do reconhecimento por outros), repute como merecedor de entrar no olimpo dos legados. Na diversidade da espécie, há de haver um lugar, e talvez não despiciendo, para os pretensiosos.
Parto de outra hipótese: nem todos se desprendem da individualidade para se reconhecerem um ente que só faz sentido se for inserido num grupo. Nem todos pretendem o reconhecimento exterior. Nem todos, ao serem autores do que posteriormente possa ser considerado um legado, tratam da autoria da proeza como se depois ela vier a ser reconhecida como legado. Há quem passe ao lado destas sinecuras. Se o são em vida do próprio, pode ele não conferir importância ao reconhecimento exterior. A centralidade do seu eu previne a contaminação do reconhecimento exterior. Se a sinecura é póstuma, é inútil até para os que muito labutaram para dela serem credores.
Um feito começa sempre por ser do domínio privado, exclusivo do eu que o tutela. Quando acontece transbordar da esfera do eu e merece apropriação do todo (ou de uma qualquer parte do todo), é um legado que só acontece depois do acontecimento que o legitima. Um legado só interessa a quem o recebe. E um legado só é legado quando os futuros assim o ajuízam.

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