27.2.20

Agência (short stories #198)


Imploding Stars, “Childhood”, in https://www.youtube.com/watch?v=upgI3ZZCwOA
          Eram os braços mais compridos que se conhecia. Do tamanho de tentáculos de polvo (sem o lado sombrio que se poderia desenhar através da metáfora). Pesavam mais do que estátuas e, todavia, açambarcavam uma leveza surpreendente. Desmultiplicavam-se na sua generosidade. Parecidos com braços de rio, num delta que tinha cabimento na incomensurável precisão dos outros. Era como se fosse um confessor sem confessionário estabelecido. Nómada. Um pouco como os seus braços em que se refugiavam os que deles precisavam, na modesta reparação das almas que não sabiam do mar, na decantação das angústias que não se suprimiam pelo dote da vontade, na fonte de onde obtinham sereno encantamento pelo porvir. Ninguém cuidava de aferir as suas interiores dores. Quando se estabelece um modo de vida, quem quer saber da sua antítese? A meticulosa indagação das amplitudes das marés não tirava o sono. Se ao menos houvesse manhã sem a tergiversação do orvalho, o palco ficaria desembaraçado de contratempos. E, porém, ninguém cuidava de perceber se por ser o cais onde tantas importunações alheias aportavam, o homem com estes braços tão compridos não seria avexado pela insónia. Ninguém cuidava de estimar a medição das cogitações que o assaltavam por se prestar a este papel. Os que conseguiam ter um lampejo de lucidez e começavam a interrogação, depressa capitulavam: “ele é forte, está preparado para purgar as angústias dos outros”, diziam, talvez em exercício defensivo que precatasse possíveis desaguisados da consciência que deles tomassem conta. Um dia, o seu lugar ficou vazio. Na geografia dos seres, a sua ausência não foi notada. As almas errantes tinham um manual de instruções de onde constava o inventário dos homens com braços insolitamente compridos. A indiferença pelo lugar vago era um excruciante egoísmo. Era como se o lugar vago não precisasse de indagação. Ninguém queria saber do fado do homem imensamente generoso.

Sem comentários: