11.2.20

Às terças-feiras há filosofia na Tasca do Almerindo


Baxter Dury, “I’m Not Your Dog”, in https://www.youtube.com/watch?v=x_x9tB2Qsyk
Só às terças-feiras, que é o dia em que amesendam o Tibúrcio, o Rafael e o Jesuíno. Chegam sempre circunspectos, soletrando cada sílaba do silêncio, talvez consumidos pela fome que antecipa o repasto servido pelos amanuenses do senhor Almerindo. Tratam-se pelos nomes próprios, o proprietário da tasca e os três ocasionais utentes. O senhor Almerindo nunca desfiou o rol das interrogações que tem à guarda da sua particular curiosidade. Suprime a curiosidade em favor da reserva dos clientes. Só sabe coisas da vida dos clientes quando são estes a contar-lhas. 
Às terças-feiras, o senhor Almerindo não recusa ser ouvinte atento das conversas entre aqueles três clientes assíduos. Para garantir que não perde uma meada da conversa, reserva a mesa mais próxima do lugar de onde dirige o restaurante (convenientemente equidistante entre a sala de refeições e a cozinha). Antes do vinho, a conversa é servida sem indulgência. Almerindo, senhor de uma prodigiosa memória, anota os pedaços mais insuetos da conversa de cada terça-feira – é a sua empreitada regular a meio da tarde, quando o serviço assentou e há alguma paz entre o almoço e o jantar. Já tanto arquivou a sua caligrafia que podia publicar um livro em nome dos três compêndios ambulantes que às terças-feiras amesendam no seu restaurante. 
Jesuíno – Logo hoje, que retribuí desinteressadamente à senhora da limpeza o meu exemplar do Jornal de Letras, é que precisava dele para vos dar conta da recensão que o Almeida fez ao mais recente livro do Afonso.
Tibúrcio – Ouvi dizer que o autor se aproxima do registo do Tavares. Mais ao nosso gosto, portanto.
Rafael – Ou seja, para glosar a voz popular: esotérico.
Tibúrcio – E o que interessa que se riam de nós? Não vamos dar parte de fraco para sermos acolhidos pela voz popular, pois não?
Jesuíno – Já sabemos que não, já sabemos que esta conversa está encerrada e que não capitulamos às modas. Que se ostracizem as modas.
Tibúrcio – Também ouvi um rumor sobre a Clementina...
Rafael – Tens de contar! Se é sobre a Clementina, tens de contar!
Tibúrcio – Ela mudou de posição quanto à teoria do branqueamento oportunista. Agora já não é tão refratária. 
Jesuíno – Diz-se por aí que foram os bons ofícios do Madaleno, se me faço entender...
Rafael – Felizardo!
Jesuíno – Isso quer dizer que a Clementina já não reprova os taliões que escrevem a justiça impregnada de determinismo? Ela deixou a posição suave que tinha dantes? Fico surpreendido.
Tibúrcio – É pena. Ela aproximou-se das nossas posições. Já não será tão...tão interessante pleitear com a Clementina. 
Jesuíno – Podemos mudar de posição. Só para continuarmos a refrega com a Clementina.
Rafael – Nesse caso, ainda nos atiram à cara o pecadilho da incoerência.
Jesuíno – Quero lá saber. Primeiro, estou para ver quem tem linhagem argumentativa para nos acusar de incoerência. Segundo, só de pressentir aquelas intensas trocas de argumentos com a Clementina, não me desagrada a ideia de ser acusado de incoerência.
Tibúrcio – Esta açorda de ovas de bacalhau está divinal, senhor Almerindo. Dê os nossos parabéns à cozinheira!
Rafael – Julgo que tem um excessivo travo a coentros, dissolvendo o sabor forte das ovas. 
Jesuíno – Discordo. Se não tivesse este aroma a coentros, não suportavas o forte sabor das ovas.
Tibúrcio – Temos de consultar as obras dos eminentes filósofos para sabermos se há alguma menção ao bacalhau.
Jesuíno – Estás à espera que os vultos da filosofia, que não foram portugueses, dissertem sobre o bacalhau, que é uma iguaria que desenha a idiossincrasia gastronómica deste país?
Rafael – Por que não? Nós somos testemunhas do muito insólito que já encontramos nas páginas que lemos.
Tibúrcio – Mudando de assunto: o quadro do Wittgenstein que tenho na sala está manco. Caiu um prego. Para minha surpresa, não tenho pregos em casa.
Jesuíno – Para tua surpresa...Não sejas imodesto. Aposto que nenhum de nós tem pregos guardados em casa.
Senhor Almerindo (que não deixou de estar desatento à conversa) – Eu cá tenho uns pregos que são divinais, não ficam a dever aos do Ramiro. É o que dizem pessoas insuspeitas. E não levam coentros. Na próxima terça-feira posso-lhes avivar a memória e vão provar estes pregos. Asseguro-lhes que o Wittgenstein se endireita num instante.

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