24.2.20

Complexo épico


Trentemøller, “Silver Surfer, Ghost Rider Go!!!” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=989pjmGhK24
Ninguém devia guardar fantasmas sem os exorcizar. Ou melhor: devia-se aprender na escola como exorcizar, e a título definitivo, fantasmas que viessem a ser povoamento da alma. Para não sermos reféns de complexos épicos.
A compreensão das angústias interiores não é empreitada fácil. Não há suficiente perícia para juntar as variáveis todas num tabuleiro liso, para depois as depurar devidamente e chegar a uma terapêutica. São épicos, estes complexos que gastam as veias e envenenam o sangue. Em vez de haver espírito para receber no regaço os predicados que merecem exaltação, o pensamento descai para os tenebrosos fantasmas que são uma tela baça contra a lucidez.
Houvesse ao menos a capacidade para sabermos sair da cápsula restrita de onde nos tomamos muito a sério e seria uma ajuda a não desprezar. Não sabemos contemplar o logro da imperfeição. É um paradoxo: ninguém põe de parte essa inata condição, mas não somos estrénuos ao lidar com as fragilidades. Ou reagimos em estado de negação, fingindo que as fragilidades não nos habitam. Ou somos servidos na fogueira das aflições internas, porque, apesar da nossa imperfeição, interiormente não toleramos que seja essa a nossa condição e que, por ser essa a condição, algumas fragilidades sejam a voz mais alta.
Sonhamos acordados quando temos pela frente o repto do complexo épico. Confundimos conceitos: um drama é menos do que uma tragédia e, contudo, é frequente convocarmos a tragédia como estado de alma. Sonhamos acordados com o fingimento de nós mesmos. Não é irrelevante repeti-lo: marchamos continuamente num palco onde fazemos o papel de um outro que não corresponde com o nosso eu. Sem sabermos que na finitude do palco se encontra um precipício. Esse é, talvez, o maior dos complexos. Um épico complexo da revelada fragilidade que nos custa como a dor de um punhal que rasga fundo até ao osso.
A astúcia está em não nos levarmos a sério. Se aceitarmos que somos uma microscópica emanação do todo, não nos revemos na solenidade com que nos tomamos repetidamente. É o primeiro ato para o silenciamento dos complexos épicos que nos sobressaltam. Sem nos tomarmos a sério, não nos importunamos com as pessoais vergonhas.

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