Sharon van Etten, “Beaten Down”, in https://www.youtube.com/watch?v=gC9GyTAuk8s
I
Estiolam-se as vontades no parapeito do remorso. Entre duas palavras sem espessura, o café é bebido mecanicamente, quase como se nem soubesse a café. Na mesa do lado, uma conversa enfática, engalfinhada. Gente acalorada na tradução de argumentos ímpares. A conversa distraiu-me. Perdi o fio à meada dos pensamentos que eram hesternos à conversa. Os sentidos atraiçoam-se.
II
A meio da tarde fui à janela. Precisava de uma interrupção. Não conseguia encontrar o dínamo da concentração e dispersava-me por assuntos que não eram chamados à colação àquela hora. O dia prematuramente primaveral fazia efeito de estufa junto à janela; o sol estava deitado sobre aquela parte do edifício como lembrança extemporânea da canícula que não tarda a remoer os corpos em mansardas de suor. Lembrei-me dos verões. De como parecem insuportavelmente longos com a passagem do tempo. De como exsudo mais à medida que os verões se sucedem. Lá em baixo, um rapaz surgiu, apressado, montado numa bicicleta urbana. Estacionou repentinamente junto a um automóvel de alta cilindrada. Num golpe seco, partiu um vidro e mergulhou para o interior do automóvel, de onde saiu num ápice na companhia de uma mala. Desapareceu do horizonte quase antes do alarme do automóvel começar a soar. O alarme: era altura de regressar ao trabalho.
III
O fim de semana não tinha agenda. Estava farto de agendas, de relógios, de compromissos aqui e ali, de idas involuntariamente obrigatórias a este lugar e àquele. Podia sair da cidade. Contrariei a pulsão. Queria ficar na cidade e sentir que a ela não pertencia. Tinha de descobrir um quinhão da cidade que não tivesse sido descoberto. Fugir dos turistas, acima de tudo. “Fugir dos turistas”; interiorizei as palavras, debatendo-me com uma contradição interna. Nunca reneguei os pergaminhos cosmopolitas. Sempre que podia, viajava, tornava-me num ser de que estava a querer fugir no fim-de-semana. Tinha de encontrar uma explicação para a contradição interna? Não. Era o fim-de-semana madraço.
IV
A arrogância marialva com que alguns homens abordam as mulheres é indigente. Tamanha sobranceria, a roçar uma superioridade estulta, esconde um amuralhar de outras limitações. Essa era a teoria. Tinha outra: os homens que, em roda de amigos sem a presença do sexo feminino, ou em típica conversa de balneário, empunham os galões de exuberante donjuanismo, devem ser uns fracassados. É fácil tamanho ufanar quando não é legítimo apresentar provas. São como os cães que ladram, mas que ficam a léguas de morder. Escrivães que se limitam a escrever as suas próprias narrativas. Sem saberem passar do papel à ação.
V
Pobres, os escrivães.
Sem comentários:
Enviar um comentário