19.11.20

Um homem bom

Slove, “My Pop”, in https://www.youtube.com/watch?v=I2YfsUC7-FQ

1.    Querela

A bem da paz interior, disparadas as munições contra o cais onde a consciência procurava esconderijo. Debatia-se. As dores interiores, excruciantes, pelejavam contra o sono. A matéria infecunda povoava o pensamento, tornando os sonhos um plúmbeo peso arqueado sobre a ossatura. Não sabia por onde começar: não era um homem bom. E havia dias sucessivos que, nos interstícios do tempo, uma janela fulgurante se entreabria e bolçava um sobressalto: não era um homem bom. O padecimento não era bom augúrio. Já não sabia que verbo mobilizar para não se amotinar pelo avesso de si.

2.    Petição

Estava exaurido. O pouco sono não dizia nada. Era como se estivesse hipotecado a uma toga sem corpo, um rosto sem limites debitando sucessivas sentenças, libelo condenatório permanente. Pouco avistava da luz que se insinuava entre o gradeamento que separava o poço do resto do mundo. Não podia continuar a ser um homem mau. Não medrava no arrependimento, contudo. Sabia que ao ser um homem mau arrastara vítimas na sua premonição. Alguns danos eram irreparáveis. Se ponderava deixar de ser um homem mau, não era por respeito às possíveis presas que estivessem por ser açambarcadas se continuasse a ser um homem mau. Era por si, pela exaustão que era ser todos os dias um homem mau.

3.    Distrate

Para ser um homem bom, tinha de se demitir da condição de homem mau. A abrogação do que queria deixar de ser. Tinha de se constituir a maior vítima de si mesmo. Não era um beneplácito endereçado aos outros, que a transfiguração não requeria o consentimento alheio. Na ascese determinista, polvilhou a alma com uma prece invisível, silenciosa. Daquele corpo haveria de ser retirada a alma malquista. Nem que fosse à força.

4.    Intenção

Não sobravam teatros hibernados para o enxerto. Só contava uma vontade, a dele. O mundo nunca fora tão exterior, tão distante. Não precisava de erudição nem de um retiro confessional para lobrigar o procedimento da transfiguração. Era de um querer, um querer avalizado pela convicção, que se falava. O corpo seria a provação. A intenção, um esboço que não esbarra em esquinas nem se submete à contrafação. Mas pode não ser viável. A intenção tem de ficar selada numa jura que não o seja, formalmente. Encerra-se o mundo, se preciso for, para fingir que está sozinho e ninguém o perturba na empreitada.

5.    Memória futura

Ele será, depois de féretro em cinzas ao mar despojado, o testamento de si mesmo. Já não estará entre os vivos para saber se foi a tempo de ser um homem bom. Nessa altura, já não importará. 

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