Mote: “Apareço aqui, diante de vós, a dar a cara por estas medidas.” (Um primeiro-ministro de um lugar irremediável, um tanto desorientado a tentar disfarçar a desorientação com uma bravura que fica bem no retrato)
Não será a prosa sobre o dito primeiro-ministro, nem as suas táticas de sobrevivência que parecem sobrepor-se à governação do lugar; nem apanharão o autor da prosa no lodo onde campeia a batalha política, numa lógica binária que parece ser uma contaminação (de comportamentos) dentro da contaminação geral (da peste e do medo adjacente) – pois que aos defensores do primeiro-ministro parece intolerável que haja quem o critique, servindo-se da muleta de um presidente em funções que convoca a “unidade nacional” como imperativo circunstancial, logo interpretada como pretexto para silenciar quem faça soerguer uma crítica voz. Comentário único aos fétidos tempos de peste por dentro da peste: mal anda um lugar assim.
De tal lugar se diz ser habitado por uma gesta de gente brava. A coragem ficou tatuada na audácia das conquistas além do mar demandado e persistiu na memória coletiva, com variações temáticas. Sempre gostámos de ser intrépidos anões a desafiar adamastores inomináveis; foi a compensação pela nossa pequenez. Por exemplo, os bravos que lidam touros, passando por cima da lide desigual, são uma das manifestações modernas (melhor seria dito: atávicas) da valentia que arregimenta hostes.
Dizer “aqui estou, a dar a cara” costuma acontecer quando quem o diz está refém de uma fragilidade de que se quer desembaraçar. É um truque retórico para virar o jogo do avesso, saindo por cima quando se salda a contenda. Para um mendaz, seria mais fácil continuar acantonado no esconderijo. O corajoso dá a cara. Espera, ao menos, que o louvem pelo ato corajoso.
E a coragem, para além de ser um disfarce, resolve o quê? Mesmo quando a coragem vem abraçada à humildade da aceitação do erro, não resolve nada. “Dar a cara” é um eufemismo do habitual arrependimento, quando a lucidez serve de caução à admissão do erro. Mas o arrependimento – como o desassombro da coragem de quem “dá a cara” – não remedeia o erro. “Dar a cara” é inútil. Quem aparece bravamente a dar a cara está protegido pela cápsula de um monólogo. Não se expõe às possíveis vítimas do erro cometido, que poderiam querer singrar a vingança em direto e diretamente na cara do arrependido.
Dar a cara desta forma e neste contexto não passa de coragem altiva. Uma apólice de seguro para quem se penitencia, mas um logro que atira os olhares para futuras núpcias, compondo uma imagem para memória futura. Dar a cara nestes termos nem devia ser interpretado como valentia: é um adiamento e uma fuga ao passado. Não passa de bravura marialva de quem lida um touro numa lide desigual.
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