“É uma vergonha”, protestou em voz inflamada o tribuno, assentando as mãos pesadamente nos corrimões da plataforma de onde perorava, como se a vergonha acusada se arqueasse sobre o seu dorso. Repetiu, agora em exclamação: “é uma vergonha!”, desapoiando uma das mãos para erguer um dedo acusatório, como se o dedo perscrutasse a infâmia dos que acabava de denunciar. Não os nomeou – isto é, não anunciou os seus nomes –, mas toda a gente sabia de quem falava.
Quando é preciso desnudar a impudicícia alheia, acontece o espelho estilhaçar-se fragorosamente no espaço limítrofe do relator das vergonhas que não podem ficar na esfera íntima de quem as comete. Ele há vergonhas e vergonhas, umas que não transbordam do eu que as pratica e outras que são uma colheita visível aos olhos dos outros. E há gente que se demora na sindicância dos comportamentos dos outros, ansiosamente à espera de um deslize que ponha uma desvergonha à mostra. Sempre escoltados pelo espelho que se estilhaçou e que não pode devolver a imagem do denunciante.
Seria caso (não fossem outras circunstâncias as mais ponderosas) para instituir uma patrulha que diligentemente reparasse os espelhos estilhaçados dos zeladores das desvergonhas caídas no teatro público. Provavelmente, os diligentes apóstolos da vergonha pública seriam apanhados nas suas próprias desvergonhas, esperando-se que a medida fosse capaz de os desmotivar da lavra a que se propõem, deixando as vergonhas dos outros entregues ao parapeito da sua própria consciência. Seria caso, não fosse o caso de não se tolerar uma patrulha para patrulhar os síndicos das vergonhas.
Em medida suplementar, que se prescrevesse a prescrição da vergonha. Partindo do pressuposto de que não há seres impolutos, as vergonhas cometidas seriam deixadas à alçada dos próprios. Elas prescreveriam no raio de ação de quem as cometesse. Sem que outros pudessem ensaiar esgares de superioridade, ou se substituíssem a juízes que estão apalavrados nos interiores caminhos que sondam a medida da consciência.
Em alternativa, alguém devia contrapor sistematicamente, sempre que outrem protestasse “é uma vergonha”, que “havíamos de ter vergonha se usar a palavra vergonha”. Para não a esvaziarmos de conteúdo. E para não termos o topete de pesar os outros na aferição de uma balança que não lhes diz respeito (pois é nosso calibre, apenas).
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