29.1.21

Cansei de ser sexy (epílogo de um D. Juan em vésperas de reforma)

Cansei de Ser Sexy, “Let’s Make Love and Listen to Death From Above”, in https://www.youtube.com/watch?v=7agPOt1XZz8

Um tempo extingue-se. Todos os tempos se extinguem. Uns, a tempo. Outros, a destempo. Pensava nisto, nesta platitude, enquanto se observava ao espelho depois do banho matinal. O corpo já não é o que era. As adiposidades ecoavam pelo espelho fora. Se exagerasse, diria: as adiposidades transbordavam o espelho. A lisura da pele perdera-se. No rosto, as rugas acentuavam-se, marcando a passagem dos anos e (não o queria admitir, por ir contra o código ético dos boémios) o desregrar. Os cabelos agrisalharam-se e começavam a escassear. As capacidades já não eram as de outrora. “O corpo está a começar a ficar gasto”, reconheceu, a custo, dragando a melancolia para o resto do dia.

Tudo era cansaço, por aqueles dias de introspeção. Por fortuna, não notava a capitulação do viver. As coisas tinham de ser separadas. Como acontece nos livros, que são divididos em capítulos. A exaustão do corpo não se contagiara ao demais. Continuava intensamente ativo nas faculdades mentais – ou, pelo menos, assim queria que fosse a bitola afivelada. Não se dispersava em distrações, não sentia gasta a concentração, e permanecia leal aos exercícios mentais que prolongavam estas capacidades. Uma mnemónica para memória futura. Mas o resto enfraquecia. Não podia resistir a uma certa nostalgia precoce que invadia o palco. 

“Cansei de ser sexy”, protestou. Como se, em jeito de redenção, batesse vigorosamente no peito à medida que as sílabas se arrastavam. É que as pessoas, as pessoas que não são sexy, não sabem do ónus de ser sedutor. É preciso ser constantemente simpático. Às vezes, nos dias maus, a simpatia é a maior das dores. É preciso ser constantemente imaginativo. E nem sempre a fonte da criatividade é generosa. É preciso lidar com múltiplas solicitações. Muitas vezes acontece que a satisfação das múltiplas solicitações obriga a fazer opções, com o elevado preço a pagar na moeda franca do dilema. 

A cura do tempo precata os males que ele pressagia. Era assim que, já o podia declarar, “outrora sexy”, agora se situava. Não contassem com ele para os jogos de sedução. Não estivessem à sua espera para alimentar o filão da boémia. Que não esperassem pelo seu contributo para a miscelânea de corpos e de lugares em simultaneidade, ou para a voragem de corpos assestados nos muitos palcos demandados. 

O espelho, à saída do banho matinal, fora a sentença. “Agora, deixo o veneno de parte.”

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