13.1.21

Já ninguém pergunta pelo paradeiro de uma rua

Idles, “Reigns”, in https://www.youtube.com/watch?v=fO11I2v4JOY&pbjreload=101

            (Vamos fazer de conta que inventaram o Google Maps)

Já ninguém pergunta onde é uma determinada rua. Ninguém pergunta, a quem passa, como se chega a essa rua. Somos conhecedores da topografia das cidades e das veias que são as estradas, e em vez de mapas transportamos bússolas embutidas no corpo. Pois à voz não damos o uso dos antepassados, quando o desconhecido era desconhecido e para o tirar da penumbra era preciso dar corda à voz para da voz estranha sabermos desenhar o caminho até ao destino procurado.

Agora, os cicerones passaram a ser letra morta. Foram dispensados do serviço. Dantes, brilhavam com a galhardia com que iluminavam o desconhecido aos forasteiros, tirando-os das trevas do desconhecimento e possibilitando que o desconhecido passasse a ser conhecimento para os forasteiros. Se havia maneira de se gabarem, era quando alguém deles dizia conhecerem o lugar como as palmas das (suas) mãos. Pois convencionou-se que todos conhecemos as palmas das mãos de olhos fechados, o que é uma impostura: quem consegue desenhar, sem para elas olhar, as palmas das próprias mãos?

Agora, que trazemos bússolas embutidas no corpo, as palmas das mãos deixaram de ser o selo da cartografia. As linhas que desenhavam as mãos foram apagadas. Pois hoje ninguém precisa de conhecer os lugares como as palmas das mãos: seria sinal de desconhecimento. Se olharmos para as mãos bem abertas, reparamos que são lisas as palmas. Nem para reterem o suor elas servem, agora que foram desapossadas da cartográfica linhagem.

Uma bússola embutida no corpo: os dispositivos eletrónicos onde se aloja a bússola vivem paredes meias com os corpos, são os seus habitantes-forasteiros número um. E como as pessoais bússolas servem de socorro na hora de obter a informação sobre um destino, deixamos de procurar cicerones e de usar a voz para lhes perguntar sobre o paradeiro de uma rua ou de uma estrada. A máquina despersonaliza-nos, outra vez. Substitui-se aos mecanismos humanos da interação entre iguais. Agora, falamos com uma máquina que se colou aos nossos corpos e já não se desaloja, até, das almas. Deixámos de falar como os nossos pares. Voltamos a ser o nosso próprio dogma.

(Vamos fazer de conta que voltava a não haver Google Maps e GPS ao preço da uva mijona: talvez estivéssemos de regresso à voz e aos nossos pares. Os compêndios mostram que muitas amizades – e uns quantos amores – se habilitaram à custa dos forasteiros desorientados que precisaram do fio de prumo dos nativos.) 

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