O casaco de couro puído, minimamente roto numa manga, abriga-o do vento noturno. “Já não há gente a ocupar a noite, como dantes”, lamentava, enquanto fugia entre as sombras para não ser apanhado em delito. O sono estava em atraso. A insónia atirou-o para a rua. Era das raras testemunhas da noite fantasma.
Não sabia por que o sono estava em atraso. Não havia frases que o condoessem, atritos com os dias recentes, nenhuma angústia existencial, ou preconceitos castradores. Não tinha querelas. Não sabia se não era exigente para não exibir ausentes padecimentos, ou se a vida era pródiga consigo. “À melhor de cinco, como nos jogos de ténis: à melhor de cinco, vai ser o critério para prosseguir o exílio noturno”, jurou aos deuses esquecidos. Seriam no máximo cinco encruzilhadas e um pouco de acaso a determinar a rota da noite. Corria o risco de ser apanhado em falso. As forças policiais eram exigentes com os contrafatores que saíam de casa à revelia.
Esgueirava-se como os gatos vadios, saltando de soleira em soleira, abrigando-se da chuva incessante, aninhando-se atrás de um carro estacionado quando percebia as luzes feéricas de outro carro em aproximação. Toda aquela adrenalina era contraproducente. Se saíra de casa, foi porque a insónia dera instruções nesse sentido. A demanda noturna seria como um medicamento tomado para convocar o sono. Só que a infração contínua causava um sobressalto interior. Era o contrário do precisava para a convocatória do sono. Não se acanhou. A excitação dos sentidos compensava. Já há tanto tempo que não sentia as labaredas a exsudar o gelo entediante. Era a supressão deste sentido em falta que o apoquentava. Só que não sabia.
Por fim, sentia-se vir à tona. Deixava de ser a ínfima fração do que em si se encerrava. Não queria sondar as desfeitas que o conduziram à apatia – não podia perder esse tempo, precioso que era. Depois de se sentir a vir à tona, a plenitude não se gorou. Era como se o mapa dos lugares não chegasse para a estatura da sua silhueta. Agora que estava à tona, não podia deixar de ser toda a colheita de si vertida. Já fora tempo de mais a fingir, a obedecer a costumes, a ser mandado, e ele submisso, a deitar-se à hibernação que fazia com que fosse apenas a ínfima fração do que em si se encerrava.
Agora, que emergira à tona, era todo ele em seu esplendor. Sem contas a prestar, sem o medo a açambarcar as fragas do tempo, sem fantasiar com palcos fátuos onde as personagens são o idioma vivo do fingimento. Ele, em todo o seu esplendor, sem vernizes ou cortinas de sombras, desembaciado, luminosidade singular.
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