8.1.21

As duras penas

Tv on the Radio, “Staring at the Sun”, in https://www.youtube.com/watch?v=oHrTOQ18yzU

São pesadas, as manhãs. Mesmo as que se emancipam do crepúsculo e, translúcidas, se emprestam à vivacidade das almas. Serão as noites desormidas, ou o jugo de pesadelos tentaculares, mas não tem à mão a lucidez que chegue para descrever quão fortunosa é uma manhã.

Se fosse indagado por vigias da integridade das almas, e se não fosse coibido pelo véu que mascara a vergonha (sempre tão hipotecado por ela), diria que são as francas dores de alma que o deixam exangue. Interiorizou as duras penas que se atribuiu em autojulgamento. Soube, em tempos, de um amigo que procurava amenizar as importunações que cerceavam o sono. Esse amigo sossegava-o: há almas transtornadas por padecimentos maiores, dizia. Desconfiava. Aquelas palavras soavam a indulgência sem corpo nem forma, um ardil para o extrair à vertigem pré-comatosa em que se encontrava. Como podia o amigo ter conhecimento de causa dos padecimentos que embaciavam a lucidez geral?

Tamanha amizade era contraproducente. Ensimesmou. Não precisava de comiseração. Talvez fosse melhor procedimento aceitar as duras penas a que se autocondenara. Resolveriam o amplexo de males que tiravam o sono e semeavam vultos iracundos nos pesadelos? Não sabia. Aceitava a punição, sem questionamentos. A punição tinha de ser severa. Para levar a pele, se preciso fosse, deixando a carne à mostra, para onde algozes sorteados entre os proponentes atitariam sal. Tinha de saber o significado (e o sentido) da carne viva.

Às duras penas disse sim. Com o rosto baixo: o lastro que trazia codificara a humildade. Ele não dava conta da linha de fronteira entre humildade e humilhação. Não o sabia, mas submetia-se a uma provação que configurava a humilhação. Em desnorte, refém da sua meação, tomava-o por humildade, enquanto recolhia o olhar na direção dos pés cansados. Disse sim às duras penas. E acreditava que um novo mundo, inteiro, estava à sua disposição. Para que ele costurasse os pontos cardeais. 

Às duras penas dá-se o rosto, o corpo inteiro, os interstícios da alma. Assim julgava. Não se espera que as duras penas ofereçam a redenção. Não se espera nada. Apenas as duras penas pelos extravios imoderadamente aquiescidos. 

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