4.1.21

A casa dos mortos

Teho Teardo and Blixa Bargeld, “Defenestrazione” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=UyuD3mGe7ko&t=8s

Penhora-se o medo ao alvará da incerteza. Dizem que na casa dos mortos ninguém tem de ter medo. Ou que o medo, esse medo, é uma ninharia. Os mortos são inofensivos. Proclamam uma paz que só a eles é destinada. Aos vivos é deixada a sintaxe própria da vida, a confirmação das benfeitorias e das apoquentações que combinam numa aguarela vivaz.

Da casa dos mortos fermentam as memórias. E homenagens, em forma de elegia, que aos mortos é merecida a derradeira palavra arrebatada. À casa dos mortos vão os vivos. Numa dialética que condensa um ritual. Os vivos prestam tributo ao morto. E antecipam a homenagem de que serão credores, quando chegar o futuro. Os vivos, por conta do futuro, pressentem a sua própria elegia. Por isso, o medo. Um paradoxal medo: quem desdenharia um numeroso aplauso em vida, quando os sentidos ainda fazem sentido e depuram a manifestação de homenagem?

À casa dos mortos arpoam-se silêncios que costuram impossíveis diálogos entre os vivos e os mortos. Conversas sem testemunhas por perto, pois o silêncio impossibilita-as. Na tradução das palavras, tem erupção uma verosimilhança que depende da boa-fé do vivo. São palavras sem contraste, como se pudessem ser ouro sem lei, ou uma lei sem o aval do legislador. Muitas vezes, redesenha-se a História: um sublime atentado contra a honra do morto. E a antítese da elegia de que se diz merecedor, para humilhação do vivo que se ultraja a si mesmo, em antecipação.

Mas todas as casas são casas de mortos. Em todas as casas habitou gente que entrou no panteão a que pertencem todos os mortos. É o sinalagma que devia ser curadoria da desmistificação da morte. Ou de como dela não se deve ter medo. Pois estamos todos os dias em casas que, sendo de vivos, não se despojam dos mortos que foram seus moradores. Sem vultos a adejarem sobre o espaço vital dessas casas, nem fantasmas a exigirem defenestração. Os mortos são os melhores mordomos da vida.

A casa dos mortos é a face invisível da vida. Como as duas faces da mesma moeda. Sem os espectros que se dissolvem no entardecer, deixando às mãos nuas dos vivos o mapa do seu próprio suor. 

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