22.1.21

Nem todo o chão dá uvas

TV Priest, “Press Gang”, in https://www.youtube.com/watch?v=XMT9f_apQU4 

“Inventaria-se a safra antes de se saber dos pergaminhos da terra.”

Descolorida sintaxe, esta que transfigura a medula e torna os seres em ilusões de si mesmos. A passerelle compõe-se de figurantes desarmados pela indigência. Não passam de caricaturas de um escol sem pertença. Em terra assim lavrada, só se colhem as pedras que vierem à superfície.

“Se formos ao chão e trouxermos um pedaço de terra nas mãos, tornamo-nos tutores do devir.” 

Não somos o que nos apetece ser. O material fundente que se apodera da noite contamina-se no resto do tempo. Mas somos tutores do nosso devir. Não fugimos do inventário que nos filia. Somos intransigentes com os disfarces que, malévolos, combinam com os conspiradores a tomada de praças fortes. Não fugimos do lugar onde estamos (sem ser o geográfico sentido da palavra). Porque sabemos da lavra de que somos.

“Provavelmente, mudando de sementeira, aparecemos com outro rosto.” 

Só se o magma de que somos feitos se traduzisse numa coisa diferente em virtude de uma semente variegada. Dir-se-ia: se a lava trouxer outra cor, comparecemos como produto de um enxerto de temperamentos. Mas coabitamos numa identidade sem paradeiro. 

“É das marés que fugimos. Não é dos outros que se insinuam em nós. Pois os outros não assimilam as marés que nos afligem.” 

Poder-se-ia sucumbir ao apelo do rosto coberto por fuligem. Continuaria a ser o mesmo rosto. As evasões encenadas deixam-nos desarmados. Se julgamos resistir às provações, acabamos suas presas prediletas. E só o saberemos depois de percebermos que a liberdade se extinguiu no cárcere onde somos aprisionados. A vontade deixa de ser uma manhã à espera de derrotar a noite. É a treva contínua.

“Nem todo o chão está inscrito no oráculo da fertilidade. Há terra não arroteada, terra baldia, terra inacessível, terra indescritível. Não perdem valor por essas circunstâncias.” 

Todas as palavras encerram a sua beleza. Até as que se enfeitam de uma beleza escondida. Se somos terra agreste, que não se apodere de nós um manto lutuoso. As paisagens inóspitas são decantadas por poetas e músicos e pintores. A sua bruta natureza não as amesquinha. Apenas denuncia a sua feição indomável, a expressão máxima dos lugares que os Homens não conseguem colonizar. 

São as terras que não dão uvas e, todavia, pertencem ao ouro de todos os tempos. 

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