11.1.21

Pelo mar adentro (short stories #292)

Rita Vian, “Purga”, in https://www.youtube.com/watch?v=hLCobrmB710

          Uma certa lágrima orgânica toma conta do céu: não demora e a chuva abate-se para tingir de leveza as almas exponenciadas pelo telúrico pesar. Não digo que não vá a um lugar. Não digo que enjeito uma certa palavra, que a voragem do vocabulário e a impureza dos sentidos assim o determinam. Desamarro a âncora e ordeno-me ao movimento. Decidi: vou pelo mar adentro. Desfazendo o medo que hibernava a vontade. Juntando-me aos poros das marés, por sua vez em comandita com os ventos dominantes. Não serão as tempestades que me travam. Não serão as ondas temíveis. Conjugo o verbo quimérico na manga de onde me faço trunfo. Não tenho a certeza se preciso de ser trunfo; ao meandrar pelo desconhecido, que sejam precatadas as possibilidades. Sigo pelo mar adentro e já não consigo saber do paradeiro que em terra deixei. Ou de terra alguma. Podem ser dias a fio numa demanda contínua e o olhar desabituar-se de escrutinar terra firme. O mar passará a ser a minha terra. Não me constituo náufrago. Posso estar errante, mas não me constituo náufrago. Prossigo pelo mar adentro, mas mantenho os pés firmes no chão que ele é. Desautorizo conspirações. Cesso a tutela dos ultrajes que, fáceis, se urdem na matéria gorda, indesejada. Ultrapasso as intempéries. As noites sucessivas. O luar, quando o céu se deixa caiar pela sua claridade. Cauciono as manhãs que me dizem terem sido maiêuticos os sonos de véspera. Só preciso das mãos para continuar a cavar um fio no destino do oceano atravessado. Sou eu, a memória exilada, eu que desenho as palavras malditas nos lugares ermos e sem gente. Trago em mim o estirador mental que açambarca a poética. Mar adentro, dedicando estrofes às milhas que ainda não sei. Sou esse sortilégio de mim mesmo, sonho estimado enquanto a manhã não destrona a noite agitada.

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