Noticiário da RTP, ligação em directo ao exterior do hotel onde estava hospedada a equipa da Grécia. O jovem repórter desfia a informação “relevante”, para que a audiência sacie a sua curiosidade sobre as actividades dos gregos. A culminar a sua intervenção, o jovem repórter, embriagado pela bebedeira colectiva que atingiu o país nas últimas três semanas, concluiu com a seguinte exclamação: “as epopeias literárias já pertencem ao passado. A Grécia prepara-se agora para as epopeias futebolísticas”.
O que dizer acerca da verborreia escorregadia e desbocada dos jovens jornalistas excitados com o evento futebolístico? O repórter de rua sentenciou que as epopeias, as verdadeiras e legítimas epopeias que fazem parte do património cultural da Grécia antiga, dão agora lugar a outro tipo de “epopeias” (a palavra aparece propositadamente grafada). Estas “epopeias” contemporâneas têm como intérpretes os guerreiros dos estádios de futebol, os novos heróis helénicos. Os filósofos da antiguidade, os famosos escritores que a Grécia antiga legou à humanidade, cedem o testemunho aos narradores das novas “epopeias” que enaltecem a nova Grécia. A cultura cede o seu lugar ao futebol, o grande elixir do povo, diria mesmo o novo ópio do povo – agora que com a dessacralização dos novos tempos a religião deixou de ter um lugar venerável a alimentar-se da ignorância das massas.
Sei bem que há que relativizar as palavras excitadas do jovem repórter da RTP. Inebriado pelo momento, deixou-se invadir pela emoção que toldou a racionalidade e o rigor que devem ser apanágio da imprensa. Sei bem que a expressão que ele utilizou, ainda que lida como uma metáfora, é exagerada. E, como tal, deve-se dar o devido desconto à sentença lavrada pelo imberbe repórter. Ou mesmo desvalorizá-la na totalidade, porque ela não corresponde ao sentir de quem pensa a sério nestas coisas.
Mas é neste aspecto que a exclamação que põe no mesmo patamar as epopeias literárias e as “epopeias futebolísticas” não pode cair em saco roto. O tal sentir especializado é abraçado por uma escassa minoria de conhecedores. A maior parte da população consome avidamente o produto futebol e toda a entourage de praticantes, dirigentes e jornalistas que gravita em seu redor. Sobretudo em momentos de intensidade mediática – como os campeonatos da Europa e do mundo – estes são os grandes fazedores de opinião. Eles determinam a agenda mediática, influenciam os critérios que seleccionam as notícias. As mensagens veiculadas têm um impacto determinante na configuração da opinião pública.
É neste contexto que é preocupante que um profissional da comunicação social pense (?) que os feitos da selecção grega são o substituto das epopeias literárias. É esta a imagem que fica gravada na cabeça de incautos e de outros que seguem apaixonadamente o campeonato. Uma imagem distorcida, espelho de uma retorcida ideia de quem tenta misturar água com azeite e espera que da mistura surja uma osmose harmoniosa dos dois líquidos.
Quem sabe se, daqui a algumas gerações, a Grécia passará a fazer parte do imaginário de tais gerações pelas ditas “epopeias futebolísticas”? Se a democracia é o governo da maioria, e se a maioria anda apanhada pelos pontapés na bola de vinte e dois artistas, não estranho que sejam estes gostos a condicionar a evolução. As artes plásticas e as letras estarão condenadas a vegetar num recôndito e clandestino canto da notoriedade pública. Os artistas da bola terão então o seu verdadeiro reconhecimento, vertido em enciclopédias ocupadas esmagadoramente pela “arte da bola”. A metamorfose da cultura na sua expressão sibilina.
Serão ventos passageiros, fruto de um país que andou com a bola na cabeça (ou com a cabeça na bola)? Ou uma tendência que se vem consolidando, expressão das regras democráticas que expõem os gostos das maiorias como os gostos que dominam uma sociedade numa determinada era?
1 comentário:
Não é só o povo português mas toda uma civilização ocidental globalizada dos ultimos vinte anos transformada em consumidora ávida de tudo inclusivé de eventos desportivos efémeros.
Em recente entrevista durante a promoção do recente filme " Troia", Brad Pitt foi questionado sobre a sua preparação para um filme que pretende descrever toda uma epopeia de uma civilização,base da nossa cultura ocidental;Todos esperavam toda uma descrição de horas de leitura e preparação cultural para o papel.....mas....surprise
" Fiz muita musculação" Brad Pitt dixit
Um abraço
Carter
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